sábado, 23 de novembro de 2013

Esta língua capaz de todas as cores

ALBERTO DE LACERDA:
A MARAVILHA DA VIDA E O HORROR DA VIDA
Por Eugénio Lisboa
"Quando conheci Alberto de Lacerda, em Lourenço Marques, em meados dos anos quarenta (do século passado), havia, entre nós, um factor comum: gostávamos ambos de ler e líamos tudo a que podíamos deitar mão. Mas havia também uma diferença : o Alberto lia sobretudo poesia e eu lia sobretudo ficção, teatro e História. Não que a poesia me não atraísse : o de António Nobre chegara-me, com alarme, às mãos, bem como o Fel, de José Duro (que me pus a imitar, naquela espécie de atracção-repulsão que a morte exerce sobre os adolescentes). Mas não tinha poesia facilmente à mão. Os Poemas de Deus e do Diabo, difíceis de encontrar no mercado local, ouvi-os, lidos por amigos que se deixavam facilmente fascinar pela eloquência sulfúrica (e bela) do bardo de Portalegre. De Fernando Pessoa, chegaram-me, também de ouvido, as heresias de Caeiro e os histerismos de Campos. E pouco mais. Com o Alberto, era diferente: dois anos mais velho, dispondo de muito mais tempo porque o liceu lhe interessava pouco e era faltão, dotado de um apetite insaciável pela poesia (que desencantava, por compra, por empréstimo ou em casa do pai), pela arte e pela vida, ferido de ambição desmedida e daquele modicum de megalomania que aflige tanto adolescente e não é mal por aí além, o Alberto devorava poesia, escrevia poesia e falava – já então – admiravelmente de poesia. Era um conversador extraordinário, cheio de caprichos, de paixões, de rejeições, de convicções em itálico bem acentuado, de ironias desmedidas, de achados inesquecíveis... Como poucos, sabia ser afrontoso, com um toque de maldade de uma elegância florentina. Mas não era nunca pedante e tinha um horror sagrado pelos valores “estabelecidos” e pomposos, por títulos, por “importâncias”. Lia o que lia e descobria o que descobria, pisando, por si próprio, terreno ainda novo e inexplorado.
Como todos os adolescentes, tinha conflitos  interiores e familiares, histórias que teria pudor de contar fosse a quem fosse (Régio, por essa altura, marcava-o, embora, depois passasse a rejeitá-lo com alguma injustiça virulenta).
Intrigava-me algum tanto verificar que os grandes ficcionistas que, por essa altura, me iam apaixonando (Stendhal, Tolstoi, Dostoiewsky, Charlotte Brontë) – eram postos à distância pelo Alberto que se “não atrevia” a mergulhar naquela massa, romanesca de dimensões, para ele, aterradoras. Tratava-se, pareceu-me, de uma espécie de receio... de quase pânico! Mais tarde, mudaria e viria a ler, com prazer e argúcia, numa aproximação sempre pessoal, grandes obras de ficção.
Havia, já então, no Alberto, algo de saliente que nos impressionava sem que soubéssemos  muito bem identificá-lo: um manejo invulgar da língua, um enamoramento com a língua, que desferia com vigor e frescura, num descobrimento singular de tesouros escondidos num glossário aparentemente gasto mas que ele punha a vibrar com timbre escandalosamente renovado.
Em Lourenço Marques, bonita cidade do Índico feita para, com gosto, se morar nela, habitava uma gente singular e culta que nos ia enchendo a alma de um bom veneno propiciador: o sibilino e britânico Rola Pereira, outrora amigo de Pessoa e de Sá Carneiro, que ensinava matemática sedutora a toda a gente menos ao Alberto e que, nos interstícios dos números em parada, ia mesmerizando os jovens ouvintes com a última palavra em poesia lusíada: Fernando Pessoa, Sá-Carneiro, Almada, António Botto, José Régio...; ou o imprevisível e cultíssimo Domingos Reis Costa, professor de Francês e Português e velho amigo de Hernâni Cidade e Miguéis, que trazia, da sua vastíssima (e lida!) biblioteca, livros que ia disseminando pelas mãos vorazes dos que para eles já iam preparados pelas palavras prefaciadoras, sugestivas e não raro embebidas em tónico veneno, daquele exilado por razões que tinham a ver com amores de perdição (diziam, sussurrando, as más línguas). Naqueles subtrópicos, não se morria exactamente de pasmo – como o poderiam ter dito tantos que por lá deixaram rasto, o Alberto, o João da Fonseca Amaral, o Rui Knopfli, a Maria de Lourdes Cortez, o Vítor Matos e Sá, o Reinaldo Ferreira, o António Esquível, o Fernando Ferreira, o Cardigos dos Reis, a Maria Luisa Soares, a Glória de Sant´Ana, o Tiago Oliveira, o Cordeiro de Brito, tantos outros.
Cheio de “razões de queixa”, o Alberto não foi nunca, contudo, nem um amargo, nem um deprimido. Cantava, nos seus textos, “a maravilha da vida [e] o horror da vida”, mas nem a maravilha lhe adocicava a descascada elegância do dizer, nem o horror lhe tirava o apetite de viver; cantava para ajudar “a não esquecer nunca a liberdade”, mas nunca consentiu que o seu amor à liberdade lhe desviasse a pena até às fronteiras da demagogia. Quis que os seus versos “tivessem vida própria como os gatos, os tigres, os homens belos com olhos de criança, os lemes e os quadros a óleo, que mudam com a temperatura do mar, a luz do dia e o sol da noite.”
As suas paixões literárias nunca o cegavam e, no momento próprio, era capaz de fazer as mais inesperadas e ousadas reservas, mesmo às vacas sagradas da literatura, nas quais ninguém ousaria tocar nem com uma flor. Para dar só um exemplo, numa crónica enviada para o semanário A Voz de Moçambique e publicada no nº. 150 de 11.10.1964, intitulada provocadoramente “Nota muito atrevida sobre Baudelaire”, começa num tom apologético: “Numa casa alheia, num momento de tédio, tiro da estante Baudelaire, e cai-me como um precipício este verso sublime: «Nous avons dit souvent d’impérissables choses». O tom é quase o da linguagem falada. Mas não é prosa. É um verso espantoso; para além da magia sónica (que não chegaria) está concentrada uma experiência amorosa ao limite da ambiguidade e até quase da ironia: nenhumas coisas ditas são imperecíveis; no entanto, o amor e a arte exigem – na sua lucidez delirante – ou no seu delírio lúcido – essa dimensão infinita.” Para, logo a seguir, abrir fogo com as suas bem municiadas baterias: “A minha querela com Baudelaire é que ele faz da poesia – com o seu culto do remorso, a obsessão do pecado, a mise-en-scène macabra, as aparições múltiplas do Diabo, do Mal, do Inferno (com traços, muitas vezes, de gravura barata) – uma espécie de confessionário católico”. Avesso a tudo quanto oprime – o conceito de pecado, o Diabo dos que nele acreditam, o remorso, o Inferno anunciado -, o Alberto, no mesmo texto em que rejeita o Baudelaire de tudo isto, exalta o outro Baudelaire, o do amor e da arte que “exigem – na sua lucidez delirante – ou no seu delírio lúcido – uma dimensão infinita.” É esta dimensão infinita, este excesso, este exagero de afirmação que dão a quase toda a sua poesia uma força única e um fulgor inigualado. Veja-se, por exemplo, o belo poema “A língua Portuguesa”:
Esta língua que eu amo
Com seu bárbaro lanho
Seu mel
Seu helénico sal
E azeitona
Esta limpidez
Que se nimba
De surda
Quanta vez
Esta maravilha
Assassinadíssima
Por quase todos que a falam
Este requebro
Esta ânfora
Cantante
Esta máscula espada
Graciosíssima
Capaz de brandir os caminhos todos
De todos os ares
De todas as danças
Esta voz
Esta língua
Soberba
Capaz de todas as cores
Todos os riscos
De expressão
(E ganha sempre a partida)
Esta língua portuguesa
Capaz de tudo
Como uma mulher realmente
Apaixonada
Esta língua
É minha Índia constante
Minha núpcia ininterrupta
Meu amor para sempre
Minha libertinagem
Minha eterna
Virgindade
Note-se, neste poema, os característicos excessos de afirmação: “Esta maravilha / Assassinadíssima”, / “Esta máscula espada / Graciosíssima”/ “Esta língua / Soberba / Capaz de todas as cores”, etc.etc. E note-se também como ele “isola” os superlativos absolutos simples, dando-lhes a categoria de constituírem cada um deles, só por si, um verso único (“Assassinadíssima”, “Graciosíssima”).
Uma das características mais atraentes da arte deste grande fabbro é a tensão que, nele, vai constantemente existindo entre este excesso “romântico” e o mais rigoroso governo dos constrangimentos que a grande arte clássica recomenda: esta tensão sublima-se, de modo grandioso, na sua colecção de Sonetos, editada em Veneza, em 1991 – uma das mais belas colectâneas  desta forma poética – o soneto – que entre nós se publicaram: uma forma tão exigente, que Godeau, bispo de Vence, insinuava não ser o soneto coisa deste mundo.
O meu convívio com Alberto de Lacerda viria a reatar-se, de modo algum tanto errático, em Lisboa, entre 1947, ano em que aqui cheguei, vindo de Moçambique, e 1951, ano em que ele partiu para Londres, onde, para sempre se fixaria. E retomou-se, em Londres, onde eu próprio vivi, entre 1978 e 1995. Foi aqui que mais e mais frutuosamente (para mim, e espero que também alguma coisa, para ele) convivemos.”CONTINUA

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