"Diz a minha mãe
que eu comecei a fazer versos aos 5 anos e aos 10 tive a comoção de ver os
primeiros impressos e públicos.Escrever poemas foi sempre para mim um estado de angústia, um sofrimento
autêntico. Amorteci todo esse sofrimento durante anos até ao dia em que por
motivos dolorosos me desfiz dele por completo na ingénua presunção de que me
atrapalhava. Sobre isso passaram vinte anos. Após eles... tive
trágica conversa comigo mesmo, a sós, e resolvi nascer de novo." António
Gedeão em “Carta
a Jorge de Sena, de 29-12-1963 “
Poema do Futuro
medito o meu destino.
No declive do tempo os anos correm,
deslizam como a água, até que um dia
um possível leitor pega num livro
e lê,
lê displicentemente,
por mero acaso, sem saber porquê.
Lê, e sorri.
Sorri da construção do verso que destoa
no seu diferente ouvido;
sorri dos termos que o poeta usou
onde os fungos do tempo deixaram cheiro a mofo;
e sorri, quase ri, do íntimo sentido,
do latejar antigo
daquele corpo imóvel, exhumado
da vala do poema.
Na História Natural dos sentimentos
tudo se transformou.
O amor tem outras falas,
a dor outras arestas,
a esperança outros disfarces,
a raiva outros esgares.
Estendido sobre a página, exposto e descoberto,
exemplar curioso de um mundo ultrapassado,
é tudo quanto fica,
é tudo quanto resta
de um ser que entre outros seres
vagueou sobre a Terra.
António Gedeão, in “Poemas Póstumos” 1.ª ed. – Lisboa : Ed. João Sá da Costa, 1983. – (Colecção Poética )
Poema do afinal
No mesmo instante em que eu, aqui e agora,
No mesmo instante em que eu, aqui e agora,
Limpo o suor
e fujo ao Sol ardente,
Outros,
outros como eu, além e agora,
Estremecem de
frio e em roupas se agasalham.
Enquanto o
Sol assoma, aqui, no horizonte,
E as aves
cantam e as flores em cores se exaltam,
Além, no
mesmo instante, o mesmo Sol se esconde,
As aves
emudecem e as flores cerram as pétalas.
Enquanto eu
me levanto e aqui começo o dia,
Outros, no
mesmo instante, exactamente o acabam.
Eu trabalho,
eles dormem; eu durmo, eles trabalham.
Sempre no
mesmo instante.
Aqui é
Primavera. Além é Verão.
Mais além é
Outono. Além, Inverno.
E nos
relógios igualmente certos,
Aqui e agora,
O meu marca
meio-dia e o de além meia-noite.
Olho o céu e
contemplo as estrelas que fulgem.
Busco as
constelações, balbucio os seus nomes.
Nasci a
olhá-las, conheço-as uma a uma.
São sempre as
mesmas, aqui, agora e sempre.
Mas além,
mais além, o céu é outro,
Outras são as
estrelas, reunidas
Noutras
constelações.
Eu nunca vi
as deles;
Eles,
Nunca viram
as minhas.
A Natureza
separa-nos.
E as
naturezas.
A cor da
pele, a altura, a envergadura,
As mãos, os
pés, as bocas, os narizes,
A maneira de
olhar, o modo de sorrir,
Os tiques, as
manias, as línguas, as certezas.
Tudo.
Afinal
Que haverá de
comum entre nós?
Um ponto, no
infinito.
António
Gedeão, in "Poemas
Escolhidos", Lisboa, Ed. Sá da
Costa, 2001
A Poesia
“Se é a poesia, mais do que um impulso vocacional, uma capacidade que luta por
realizar-se expressionalmente, reflectindo ora o sujeito, ora o objecto ou a acção, compreende-se que, antes de tomar forma externa, lírica, épica, satírica
ou dramática, já é poesia, mas poesia em procura, poesia transitiva em relação
a uma forma, buscada, que será, depois, rebuscada, entendendo-se este último termo não só no sentido de nova procura, mas também no de aprimoramento
formal.
Antes de
alguém parir seus poemas, já os viveu e reviveu, já lhes comunicou marca e
pessoalidade inconfundíveis, de tal maneira que ninguém mais no mundo será
capaz de os reviver e os recriar na mesma medida, no mesmo grau afectivo e na
mesma plenitude do verdadeiro autor.
Essa
pessoalidade essencial é que faz legítimo o poema, tornando-o irreproduzível, o
que não significa inimitável, e único, o que não quer dizer não passível de
semelhança com outro.
A poesia, em
estado inicial, isto é, a poesia latente ainda, com relação aos outros, mas actualizada com relação ao autor, já se denuncia pela vida, pelo gesto, pelo
ser existencial do poeta, antes que este a exprima em versos.
O tempo do nascimento
do poema nem sempre coincide com o de sua concepção. Nem todo poeta tem pressa
de revelar aos outros o que já é síntese de beleza e sofrimento em sua alma.
Há, entretanto, uma poesia como que impulsiva, que se não contém pacientemente
dentro, mas força uma saída, rompe a película do repouso, para ser corpo
exterior actuante." José Newton Alves de Sousa, in Conferência "Considerações sobre a Poesia de
António Gedeão", Centro de Estudos Portugueses, da Faculdade de Filosofia do
Crato,Ceará, Brasil, 1969
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