Por Carlos Heitor Cony
"Dos 190
milhões de brasileiros, parece que sou o único a não ser ouvido ou cheirado
pelos altos e baixos escalões da República. Não me dou ao respeito de usar cartão
de visita, nunca precisei deles --pois nunca visito ninguém e não gosto de ser
visitado-- mas, se tivesse de mandar imprimir esse tipo de apresentação formal,
teria pelo menos um título igualmente único para ostentar: "o brasileiro
que nunca foi convidado nem indicado para o Ministério da Cultura".
Diante da
cultura, há duas atitudes típicas: a do militar de anedota, que quando ouvia
falar em cultura puxava o revólver, e a do banqueiro, que quando tinha diante
de si algum espécime da área da cultura, para adiantar o trabalho, puxava logo
o talão de cheques.
Não parece,
mas há razões para uma e outra atitude. O militante da cultura, reduzido à
expressão mais simples, é um pedinte crônico, inarredável, tem sempre uma série
de reivindicações a fazer, algumas de ordem pessoal, outras de âmbito geral,
mas sempre reivindicações. Lembro um caso antigo que pode ilustrar esta mania
intelectual de pedir pela cultura.
Uma tarde,
estava saindo do cinema quando esbarrei com dois membros da pesada. Levaram-me
para um canto e me forçaram a assinar um memorial ao ministro da Guerra --era
da Guerra, então, o atual Ministro do Exército.
O Brasil
mandara um pequeno contingente de soldados para integrar a força da ONU que
tomava conta do Canal de Suez, e os intelectuais do Rio desejavam levar um
grupo de bailarinos "para distrair as tropas brasileiras". Naquele
tempo, eu assinava tudo, não por convicção, mas para ficar livre da maçada.
Dias depois,
li nos jornais que o grupo de intelectuais fora recebido pelo ministro, o qual,
na base da tradicional vaselina, ficara de estudar o assunto. Ignoro se os
bailarinos patrícios foram ou não dançar no Suez --para a história do nosso
século, o esforço artístico daquele abnegado grupo perdeu-se diante de fatos
mais graves e menos dançantes.
Mas o
episódio não deixa de ser uma boa ilustração das relações entre o poder e a
cultura. Com pequenas variantes de gênero, grau e modo, o decantado diálogo
entre governantes e intelectuais é mais ou menos esse. No fundo, todos ficam
satisfeitos, porque os intelectuais sempre descolam uma boca livre, um cargo em
comissão, o financiamento de um filme ou uma peça, tiram uma migalha qualquer
das burras nacionais.
E os
governantes, por sua vez, acreditam que obraram bem, alçaram-se às alturas do
mecenato --dirão mais tarde, aos descendentes contritos: patrocinei as artes do
meu tempo.
Bem, talvez
seja impossível haver outro tipo de relação entre o poder e a cultura. Acredito
que, quanto menos precisar do poder, melhor será a cultura de um povo. E dou
outro exemplo, este mais recente: em apenas alguns anos de governo, um
presidente já presidiu não só um congresso de escritores mas a duas exposições
de gado zebu, em Uberlândia (ou Uberaba --sempre confundo o ponto geofísico
desses eventos), e tinha na agenda uma reunião equivalente em Goiânia.
Houve discursos,
placas comemorativas, comes e bebes de circunstâncias, enfim, ignoro piamente
como andam os nossos zebus, nada sei de suas mazelas e de suas conquistas, mas
acredito que estarão mais bem servidos do que os intelectuais.
Bem verdade
que ambos --zebus e intelectuais-- serão sempre medalhados pelo poder, mas
aposto muito mais na bovina saúde de um zebu do que na problemática vitalidade
dos nossos intelectuais. Houve época em que ninguém seria poeta de respeito se
não cultivasse, juntamente com as musas, uma respeitável dose de bacilos de
Koch. Hoje, com os antibióticos, a tuberculose deixou de ser moléstia
intelectual, virou o que é, moléstia de pobre mesmo.
Quanto aos intelectuais, a situação melhorou um pouco, pois na pior das hipóteses, e genericamente, são todos ministeriáveis. Mas não só de poder viverá um intelectual. Para produzir um filme, um show, um curta-metragem, um estudo sobre a decadência da cultura do café ou a hora de investir em qualquer sustentabilidade, nada se fará sem os patrocínios que de alguma forma são sempre liberados pelo poder.”Carlos Heitor Cony , em Artigo de Opinião publicado, na Folha de S. Paulo de 14/06/2013
Quanto aos intelectuais, a situação melhorou um pouco, pois na pior das hipóteses, e genericamente, são todos ministeriáveis. Mas não só de poder viverá um intelectual. Para produzir um filme, um show, um curta-metragem, um estudo sobre a decadência da cultura do café ou a hora de investir em qualquer sustentabilidade, nada se fará sem os patrocínios que de alguma forma são sempre liberados pelo poder.”Carlos Heitor Cony , em Artigo de Opinião publicado, na Folha de S. Paulo de 14/06/2013
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