“Não, mais, Musa, não mais, que a lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a Pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Duma austera, apagada e vil tristeza.”
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a Pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Duma austera, apagada e vil tristeza.”
Luís de Camões, in “ Lusíadas,
Canto X- Est. 145”
Dia
de Camões
"Muitas nações se revêem com natural
complacência nos seus grandes poetas, a Itália em Dante, a Inglaterra em
Shakespeare, a França em Molière, ou Alemanha em Goethe, mas nenhuma delas é
Dante, Shakespeare, Molière, ou Goethe, como nós somos Camões. O que cada um
desses poetas encarnou pode separar-se deles sem afectar a imagem dos povos a
que pertencem. Sem dúvida, a Alemanha é a Alemanha de Goethe como a Itália é a
pátria de Dante. Mas só Camões, graças a Os
Lusíadas, se converteu para nós, ao longo do tempo, na imagem mesma
de Portugal, e o poema, na tão celebrada “bíblia da pátria”, alma da nossa
alma. A quem escapa o que este fenómeno tem de prodigioso e que
responsabilidade impõe o confrontarmo-nos todos com o mito cultural que implica
com a ideia que fazemos, ou devemos fazer, da nossa missão e vocação na
História, ou na simples vida colectiva? É inegável
que a osmose e a identificação entre o Poeta e o Livro, entre o Livro e a
consciência nacional é não só um facto, mas o facto capital da nossa Cultura.
Se o não fosse, não estávamos aqui, reunidos colectivamente em volta de Camões,
refazendo neste templo de prodígios siderais, uma nova versão dos painéis de
Nuno Gonçalves. Podíamos estar aqui apenas para evocar aquele que continuamos a
considerar o maior Poeta da língua portuguesa e um dos grandes poetas do
Ocidente. Talvez fosse mesmo a mais pura homenagem que lhe pudéssemos prestar.
O sentido da nossa presença ultrapassa, contudo, os puros imperativos de uma
Cultura em estado de auto-dilaceramento. De qualquer modo, Os Lusíadas,
enquanto mito nacional, escapa a esses imperativos ou transcende-os. Não é a
sua música eloquente, o milagre estético que representa na poesia épica
moderna, a emoção que ainda hoje pode provocar, o que fundamentalmente celebramos
enquanto comunidade nacional. É a imagem camoniana de nós mesmos, a
nossa imagem épica, sublimada ou mesmo sublime, tal como Os Lusíadas a
configuraram há quatro séculos e continuam a irradiá-la até ao presente. Como
evocá-la, sem sucumbir à tentação de um narcisismo que nos perverteria a nós e
diminuiria o Poema, convertendo-o em espelho deformado de um nacionalismo cego,
fonte de irrealismo histórico e de esquizofrenia ideológica e cultural? O
perigo não é imaginário porque essa tentação foi e é permanente. Tanto mais que
Os Lusíadas, como todos os poemas de génio, não é uma obra de pura
beleza intemporal, neutra, que possamos consumir na paz erudita de uma devoção
de encomenda ou de uma admiração necrófila. Por ter sido e ser ainda obra viva,
o Poema confere à visão do mundo um dia encarnou, à experiência humana e
colectiva de que é reflexo, à ideologia datada de que é fruto maduro e exemplo
incomparável, uma força que continua a trabalhar e interpelar em profundidade o
nosso presente de portugueses. É o único Livro que não podemos depor na
prateleira da História porque é ele mesmo História." Eduardo Lourenço
Excerto do discurso proferido por Eduardo Lourenço nas comemorações do Dia de
Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, realizadas em Leiria, em
1980. O texto integral está publicado em “Camões ou a nossa alma”, AAVV, Camões
e a Identidade Nacional, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Col. “Temas
Portugueses”, 1983, pp. 99-107. Texto reimpresso em Poesia e Metafísica.
Camões, Antero, Pessoa, Lisboa, Sá da Costa Editora, 1983, pp. 87-96,Vence
– Lisboa, 10 de Junho de 1980.
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