"O valor das palavras na poesia é o de nos conduzirem ao ponto onde nos esquecemos delas, e o ponto onde nos esquecemos delas é onde nunca mais se pode ter repouso." Natália Correia
No dia mundial da Poesia, publica-se a XVIIª edição de Sobre a Poesia, espaço onde os poetas falam da própria poesia, preenchida com as palavras de uma poeta maior da literatura portuguesa. Em Março, celebrou-se o dia da Mulher e assinalando o 20º aniversário da morte de Natália Correia ,Coimbra instituiu o Prémio bienal Natália Correia para distinguir livros de poesia.
"O universo da maternidade configurado na pessoa da
mãe, foi a matriz primordial da forte personalidade de Natália Correia" que segundo Fernando Rebelo se destacava «profundamente materna porque aprendeu com a
sua mãe a liberdade de pensar, a dignidade do amor e o sentido da
responsabilidade cívica. " Uma mulher extraordinária, uma escritora multifacetada onde a poesia prevaleceu sobre os outros géneros."Sou uma
impudência a mesa posta /de um verso onde o possa
escrever /ó subalimentados do sonho ! /a poesia é para comer."
Celebrar a Poesia com as palavras de Natália Correia é honrar e homenagear o dia em que, no Mundo, os poetas são os que mais ordenam.
Celebrar a Poesia com as palavras de Natália Correia é honrar e homenagear o dia em que, no Mundo, os poetas são os que mais ordenam.
"Natália Correia nasceu a 13 de
Setembro de 1923 na Ilha de São Miguel, nos Açores. Veio estudar para Lisboa
ainda criança e cedo iniciou a sua actividade literária.Poeta, dramaturga, ficcionista, ensaísta, tradutora,
autora de libretos de ópera, foi também colaboradora de vários títulos da
imprensa periódica como o Diário de Notícias, a Capital e assumiu cargos directivos em O Século Hoje e na Vida
Mundial. Foi directora literária na Editorial Estúdios Côr (1971) e na
Editora Arcádia (1973); argumentista do telefilme Santo Antero, de
programas culturais transmitidos pela RTP e emprestou a sua voz para a gravação
de textos literários produzidos pela Editora Discográfica Sassetti. Integrou a
equipa da Secretaria de Estado da Cultura, em 1977, como consultora cultural, a
convite de David Mourão-Ferreira. Opositora
ao regime fascista, foi condenada em 1966 a três anos de pena suspensa pela
publicação da “Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica”, considerada
ofensiva aos costumes. Já em democracia, é eleita para o Parlamento em 1980, onde se distingue pela defesa dos direitos
humanos, das causas da mulher, da cultura e do património. Natália Correia
recebeu, em 1991, o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de
Escritores pelo livro Sonetos Românticos. No mesmo ano, a 26 de Novembro, foi feita Grande-Oficial da Ordem da Liberdade." A sua obra está traduzida em várias línguas e galardoada com múltiplos prémios. Natália Correia morreu , em Lisboa, vítima de um enfarte, a 16 de Março de 1993, meses antes de completar
70 anos.
Tudo chegava pelo lado da sombra
“Tudo chegava
pelo lado da sombra, do terror, da pegajosa ignomínia. Os esbirros amordaçavam
a luz. Com as mãos mergulhadas nas estrelas que escondia nos bolsos o poeta
assobiava uma pátria de brancura e paz. E deu flor: um poema para ensinar
risadas de camélias aos animais do medo. O poema foi arrastado para a treva
onde os estranguladores da palavra constroem o silêncio da sala de espelhos
onde o tirano se masturba. O poema atravessou o inferno e alguns dos seus sons
ficaram queimados.
Uma vez
exalado o grito de libertação que fez entrar a Cidade no exercício dos seus
timbales o poema pediu ao poeta que lhe arrancasse as suas folhas mais
ressequidas e em seu lugar pusesse as gotas de água do canto que quer correr
para a vida. E o poeta fez a vontade ao poema que queria cantar. E aqui e além
o corrigiu dotando-o da actualidade que as máquinas do inferno lhe roubaram.
COMUNICAÇÃO
EM QUE SE DÁ
NOTÍCIA
DUMA CIDADE
CHAMADA VULGARMENTE
LUSITÂNIA
ATRAVÉS DE
ALGUNS FRAGMENTOS
DOS OXYRHYNCHUS
PAPYRI
INTERPRETADOS
PELA AUTORA
QUE DESEJANDO
JULGAR O SEU
TEMPO OUSOU
LER NO PASSADO
A SIGNA DO
PRESENTE
Recentes
escavações feitas no Sudoeste da Europa confirmaram a existência de uma cidade
soterrada pelo prodígio diário de um lento e assombroso cataclismo.
Dessa cidade
- a Lusitânia - contam contos espantosos que uma mulher a quem chamavam a
Feiticeira Cotovia foi condenada às chamas por práticas de uma magia maior e
estranha a que ela dava o nome de Poesia. Pronunciada que foi a sentença a
misteriosa e sereníssima criatura anunciou com a força coroscante de um
fulmíneo augúrio: «O meu corpo em chamas será o rastilho de uma fogueira que
consumirá a Lusitânia ano após ano, geração após geração numa combustão
invisível e prolongada pela Palavra que fulge no Ponto onde todos os nomes se
reúnem na Luz.» E a profecia fez-se lume duradouro porque aquele lume ardia sem
matéria pois que era pura chama do Espírito. E os Deuses afagaram as suas
pombas porque estavam contentes com o que a Mulher tinha feito.”
Natália
Correia, in “Cântico do país emerso, 1961.Poesia Completa”, Publicações
Dom Quixote
O poema
O poema não é
o canto
que do grilo para a rosa cresce.
O poema é o grilo
é a rosa
e é aquilo que cresce.
É o pensamento que exclui
uma determinação
na fonte donde ele flui
e naquilo que descreve.
O poema é o que no homem
para lá do homem se atreve.
que do grilo para a rosa cresce.
O poema é o grilo
é a rosa
e é aquilo que cresce.
É o pensamento que exclui
uma determinação
na fonte donde ele flui
e naquilo que descreve.
O poema é o que no homem
para lá do homem se atreve.
Os
acontecimentos são pedras
e a poesia transcendê-las
na já longínqua noção
de descrevê-las.
e a poesia transcendê-las
na já longínqua noção
de descrevê-las.
E essa
própria noção é só
uma saudade que se desvanece
na poesia. Pura intenção
de cantar o que não conhece.
uma saudade que se desvanece
na poesia. Pura intenção
de cantar o que não conhece.
Natália
Correia, in “POEMAS, 1955 - Introdução ao mistério da Poesia,Poesia Completa “, Publicações Dom
Quixote
Poema involuntário
Decididamente
a palavra
quer entrar no poema e dispõe
com caligráfica raiva
do que o poeta no poema põe.
quer entrar no poema e dispõe
com caligráfica raiva
do que o poeta no poema põe.
Entretanto o
poema subsiste
informal em teus olhos talvez
mas perdido se em precisa palavra
significas o que vês.
informal em teus olhos talvez
mas perdido se em precisa palavra
significas o que vês.
Virtualmente
teus cabelos sabem
se espalhando avencas no travesseiro
que se eu digo prodigiosos cabelos
as insólitas flores que se abrem
não têm sua cor nem seu cheiro.
se espalhando avencas no travesseiro
que se eu digo prodigiosos cabelos
as insólitas flores que se abrem
não têm sua cor nem seu cheiro.
Finalmente
vejo-te e sei que o mar
o pinheiro a nuvem valem a pena
e é assim que sem poetizar
se faz a si mesmo o poema.
o pinheiro a nuvem valem a pena
e é assim que sem poetizar
se faz a si mesmo o poema.
Natália
Correia, in «O Vinho e a Lira», Poesia Completa", Publicações
Dom Quixote
Manhã cinzenta
À Partida de
São Miguel
Ai madrugada
pálida e sombria
em que deixei a terra de meus pais
e aquele adeus que a voz do mar trazia
dum lenço branco, a acenar no cais...
em que deixei a terra de meus pais
e aquele adeus que a voz do mar trazia
dum lenço branco, a acenar no cais...
O meu veleiro
- era de espuma fria -
Levava-o o fervor dos vendavais.
À passagem gritavam-me: onde vais?
Mas só o meu veleiro respondia.
Levava-o o fervor dos vendavais.
À passagem gritavam-me: onde vais?
Mas só o meu veleiro respondia.
Cruzei o mar
em direcções diferentes.
Por quantas terras fui, por quantas gentes,
Nesta longa viagem que não finda.
Por quantas terras fui, por quantas gentes,
Nesta longa viagem que não finda.
Só uma
estrada resta - mais nenhuma:
na ilha que o passado envolve em bruma,
um lenço que me acena ainda...
na ilha que o passado envolve em bruma,
um lenço que me acena ainda...
Natália
Correia, “in Inéditos, 1941/47 POESIA COMPLETA “, Publicações Dom Quixote
Do Sentimento trágico da Vida
Não há
revolta no homem
que se revolta calçado.
O que nele se revolta
é apenas um bocado
que dentro fica agarrado
à tábua da teoria.
que se revolta calçado.
O que nele se revolta
é apenas um bocado
que dentro fica agarrado
à tábua da teoria.
Aquilo que
nele mente
e parte em filosofia
é porventura a semente
do fruto que nele nasce
e a sede não lhe alivia.
e parte em filosofia
é porventura a semente
do fruto que nele nasce
e a sede não lhe alivia.
Revolta é
ter-se nascido
sem descobrir o sentido
do que nos há-de matar.
sem descobrir o sentido
do que nos há-de matar.
Rebeldia é o
que põe
na nossa mão um punhal
para vibrar naquela morte
que nos mata devagar.
na nossa mão um punhal
para vibrar naquela morte
que nos mata devagar.
E só depois
de informado
só depois de esclarecido
rebelde nu e deitado
ironia de saber
o que só então se sabe
e não se pode contar.
só depois de esclarecido
rebelde nu e deitado
ironia de saber
o que só então se sabe
e não se pode contar.
Natália
Correia, in “POEMAS, 1955 – Apontamentos Poesia Completa”, Publicações Dom Quixote
Do dever de deslumbrar
A inútil
tragédia da vida
Não chega a merecer um poema.
Só o poema merece, por vezes
A inútil tragédia da vida.
Não chega a merecer um poema.
Só o poema merece, por vezes
A inútil tragédia da vida.
As pessoas
caem como folhas
E secam no pó do desalento
Se não as leva consigo
A fúria poética do vento.
E secam no pó do desalento
Se não as leva consigo
A fúria poética do vento.
Para que se
justifique a nossa vida
É preciso que alguém a invente em nós.
Os que nunca inspiraram um poema
São as únicas pessoas sós.
É preciso que alguém a invente em nós.
Os que nunca inspiraram um poema
São as únicas pessoas sós.
Natália
Correia, in “Inéditos, 1947/49, Poesia Completa “, Publicações Dom Quixote
Algumas obras de Natália Correia: Poesia – Rio de Nuvens (1947); Poemas (1955); Dimensão
Encontrada (1957); Passaporte (1958); Comunicação (1959); Cântico
do País Emerso (1961); O Vinho e a Lira (1966); Mátria
(1968); As Maçãs de Orestes (1970); Mosca Iluminada (1972); O
Anjo do Ocidente à Entrada do Ferro (1973); Poemas a Rebate (1975); Epístola
aos Iamitas (1976); O Dilúvio e a Pomba (1979); Sonetos
Românticos (1990); O Armistício (1985); O Sol das Noites e o Luar
nos Dias (1993); Memória da Sombra (com fotos de António Matos; 1994).
Ficção – Anoiteceu no Bairro (1946); A Madona (1968); A Ilha
de Circe (1983). Teatro – O Progresso de Édipo (1957); O
Homúnculo (1965); O Encoberto (1969); Erros meus, má fortuna,
amor ardente (1981); A Pécora (1983). Ensaio – Poesia de arte e
Realismo Poético (1958); Uma Estátua para Herodes (1974). Obras
várias – Descobri que era Europeia (viagens, 1951); Não Percas a Rosa
(diário, 1978); A questão académica de 1907 (1962); Antologia da
Poesia Erótica e Satírica (1966); Cantares Galego-Portugueses (1970);
Trovas de D. Dinis (1970); A Mulher (1973); O Surrealismo na
Poesia Portuguesa (1973); Antologia da Poesia Portuguesa no Período
Barroco (1982); A Ilha de São Nunca (1982).
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