por Manoel de Andrade
"Entrei no istmo do Panamá pelo Aeroporto de Tocumen e deparei-me com uma capital moderna, bem arborizada, altos edifícios, grande tráfego de automóveis, intenso comércio nas ruas centrais e onde era visível o domínio norte-americano, pelo uso do inglês em toda parte e a circulação predominante do dólar em detrimento da moeda nacional, o balboa, cujo nome era uma homenagem ao espanhol Vasco Nuñez de Balboa, que descobriu o Oceano Pacífico em 1513. Hospedei-me num pequeno hotel do centro e saí a passear pelo agitado centro da cidade. O peso da presença ianque pairava na atmosfera social da cidade. Uma nação invadida, ferida, cercada, hipotecada por tratados perversos.
(…)Programei-me para conhecer rapidamente o pequeno país com uma superfície bem menor que o meu estado de Santa Catarina, e na época com uma população de pouco mais de um milhão de habitantes. Meu principal interesse era conhecer a Zona do Canal, algumas igrejas, e cruzar seu estreito território para matar a saudade do Atlântico. Era curioso estar num país cujas terras eram totalmente divididas pelas águas e usadas para unir, comercialmente, dois oceanos, num “atalho” por onde passavam flutuando tantas bandeiras do mundo.
A ideia que eu tinha do Panamá, até então, era a pior possível. De governantes corruptos, uma oligarquia tão reaccionária e asquerosa como a chilena e tão fútil como a limenha e herdeira da mesma oligarquia agrária que entregou o país aos ianques em 1903. Some-se a isso uma população resignada, vivendo numa alienante cultura “colonial” e imperialista. Enfim, uma situação abominável e indigna, diante do sentimento latino-americano.
Contudo, nos dois últimos anos, esse quadro começara a mudar. Quando passei pelo Panamá, em fins de 1970, seu presidente era o marxista Demetrio Lakas, mas quem mandava no país era Omar Torrijos, um coronel nacionalista que, em 1968, à frente da Guarda Nacional, comandou um golpe contra o governo de Arnulfo Arias Madrid, e iniciou um legítimo movimento em busca da soberania do Panamá. Torrijos assumiu uma posição francamente anti-ianque e, por outro lado, revolucionária, atando relações diplomáticas com o Vietname, apoiando a luta dos palestinos e se solidarizando com os movimentos de libertação nacional do continente.
Havia muito que fazer para recuperar a dignidade da nação que, nos seus últimos sessenta anos, vivera ajoelhada ante uma dependência social e económica cruel e maculada pela vergonha de um tratado, assinado em 1903, que dera a perpetuidade ao domínio norte-americano sobre a Zona do Canal, em troca do apoio militar para sua independência contra a Colômbia, uma vez que o Panamá, depois da emancipação política hispano-americana, em 1821, passou a fazer parte da Gran Colômbia, integrada pela Venezuela, Colômbia, Equador e Panamá. O próprio processo de independência teve início em 1902, dirigido pela oligarquia panamenha. Contudo a farsa para entregar o país aos EE.UU., e o descaramento dos factos, falam por si mesmo:
“El 18 de octubre de 1903, Raul Amador escribía a su hijo una carta en la cual, entre otras cosas, le decía:
“El plan me parece bueno. Una porción del istmo se declara independiente y los Estados Unidos no permitirán que ese sector sea atacado.
Será convocada una Asamblea, y ésta dará poderes a un ministro nombrado por el nuevo Gobierno para hacer el tratado sin necesidad de ratificación de la Asamblea. El nuevo tratado será aprobado por las dos partes y la nueva República permanecerá bajo la protección de los Estados Unidos, y se unirán otros distritos del istmo que aún no forman parte de la nueva República y que también permanecerán bajo la protección de los Estados Unidos.” (...)(2)
Diante disso continua Enrique Ruiz García:
"En efecto, “estalló” una revolución en Panamá el día 3 de noviembre de 1903 y el 4 se instalaba el nuevo Gobierno. Dos días antes, un navío de guerra de los Estados Unidos -- el Nashville -- echó el ancla en la bahía de Colón para impedir los movimientos de las tropas colombianas que pudieran acudir en socorro, cosa no imprevisible, de una zona que formaba parte territorial de la nación colombiana. Dos días más tarde -- esto es, el día 6 -- Norteamérica reconoció la independencia de Panamá, y el 18 se firmaba el tratado: por parte de los Estados Unidos ponía su firma Mr. Hay, y por parte de Panamá, el señor Bunau-Varilla.”
O presidente Teodoro Roosevelt, criador do modelo imperialista norte-americano e autor da política do Grande Garrote (big stick), foi o artífice dessa célebre farsa entre o Departamento de Estado, o traficante político francês Philippe Bunau-Varilla e os conspiradores panamenhos, entre eles Manuel Amador, o primeiro presidente da recém-criada nação. Na Colômbia haviam-me contado que a República do Panamá nasceu com o grito: “Viva os americanos”. Tão descarada foi a intervenção da Casa Branca que ele declarou explicitamente: “I took Panamá “ (Eu tomei o Panamá). Roosevelt foi uma das pérolas mais preciosas no colar de crimes do imperialismo norte-americano, pelo estilo de expansão e intervenção militar que ele resumiu numa frase: “Fale com suavidade, mas tenha à mão um porrete”.
2 . Finalmente um pouco de turismo
No dia seguinte da minha chegada, passei a manhã no canal vendo o incrível trabalho das comportas das eclusas no lago Miraflores, onde as águas são levantadas a 8 metros sobre o nível do Pacífico. É realmente impressionante o trabalho de esvaziar e encher as comportas, sobretudo no lago Gatún cuja superfície sobe a 26 metros sobre o nível do Atlântico. Os navios sobem ou descem, flutuando naquela imensa “caixa” de aço com 20 metros de largura até chegar ao nível do seu caminho transoceânico. Havia todo um ritual de segurança para entrar nas eclusas controladas pelos fuzileiros navais norte-americanos. Na verdade toda a Zona do Canal, uma faixa de 80 quilómetros de comprimento por 8 quilómetros de largura, nada mais era que uma região de domínio ocupada por militares, técnicos, burocratas e empregados ianques. Ao longo desse poderoso enclave imperialista havia várias bases militares e duas delas mais conhecidas pelas técnicas assassinas da sua cartilha de treinamento: o Fort Sherman, onde se preparavam os soldados para matar no Vietname e o Fort Gulich, mais conhecido como a Escola das Américas, criada em 1946 e -- a exemplo do Fort Bragg, na Carolina do Norte -- onde 60 mil oficiais das ditaduras latino-americanas fizeram estágios de treinamento nas técnicas de contrainsurgência e tortura para reprimir os movimentos libertários de seus próprios países. Teriam sido eles que ensinaram os militares chilenos como cortar as mãos do cantor Victor Jara???
Lembro-me de uma tarde que passei postado sobre a Ponte das Américas. Foram horas de um lado e de outro ao longo do rio-canal acompanhando a passagem dos navios sob aquela imensa armação metálica. Desde minha adolescência, em Itajaí, gostava de ver os navios chegarem e partirem. Havia, numa curva da estrada que ligava a cidade à Praia de Cabeçudas, uma pedra chama “Bico do Papagaio”, e era ali que me sentava em algumas tardes para acompanhar o movimento dos barcos, pesqueiros e navios entrando pelo Rio Itajaí-Açu ou saindo para o oceano. A Ponte das Américas era uma portentosa construção com cerca de dois quilómetros sobre o Canal do Panamá que os Estados Unidos haviam inaugurado alguns anos antes e dali, no meio da ponte, a uns setenta metros de altura, eu pude “navegar” com os navios que passaram rumando para o Pacífico ou para o Atlântico.
"Casco Velho", nome dado à antiga Cidade do Panamá, que foi toda destruída em 1671 |
Numa manhã fui conhecer as ruínas da antiga
Catedral do Panamá, na chamada Panamá Velha, destruída pelo fogo dos canhões em
1671 durante o ataque de Henry Morgan, o mais temido dos piratas ingleses. Conta a história que o governador do
Panamá, Agustín Bracamonte, desafiou Henry Morgan a invadir a capital do Panamá
depois de ter tomado, saqueado e incendiado a cidade panamenha de Porto Bello
em 1668. Morgan respondeu que ele aguardasse sua visita, a qual aconteceu
quase três anos depois, num ataque espetacular, comandando 35 navios e 2000
homens, tomando e arrasando a cidade. Contaram-me
no local que, apesar do imenso botim em ouro levado pelos piratas, o altar
principal, lavrado em madeira nobre e coberto de ouro, foi salvo a tempo da
rapina dos piratas de Morgan.
Eduardo Galeano conta, à sua moda, os dois ataques de Morgan:
"1671 – Cidade do Panamá – Sobre a pontualidade nos encontros
Há mais de dois anos que Henry Morgan chegou numa canoa ao Panamá, e à cabeça de um punhado de homens saltou as muralhas de Portobelo levando um facão entre os dentes. Com tropa muito escassa e sem colubrinas nem canhões, venceu esse bastião invulnerável; e para não incendiá-lo recebeu como resgate uma montanha de ouro e prata. O governador do Panamá, derrotado e deslumbrado frente à façanha ímpar, mandou pedir a Morgan uma pistola das que tinha usado no assalto.
--- Que a guarde por um ano --- disse o pirata. --- Voltarei para buscá-la.
Agora entra na cidade do Panamá, avançando entre as chamas, com a bandeira inglesa ondulando em uma das mãos e o sabre na outra. Dois mil homens e vários canhões o seguem. Em plena noite, o incêndio é uma luz de meio-dia, outro verão que sufoca o eterno verão desta costa: o fogo devora casas e conventos, igrejas e hospitais, e jorra fogo a boca do corsário que grita:
--- Vim em busca de dinheiro, não de preces!
Depois de muito queimar e matar, afasta-se seguido por uma infinita caravana de burrinhos carregados de ouro, prata e pedras preciosas.
Morgan manda pedir perdão ao governador, pela demora”
Esse célebre ataque de Morgan ao Panamá, destruindo quase inteiramente a cidade, gerou novos conflitos nas aguerridas relações entre a Espanha e a Inglaterra, fomentadas por questões religiosas, pela disputa dos mares e, sobretudo, pelos ataques dos corsários ingleses aos galeões espanhóis carregados com o ouro do Peru e a prata da Bolívia.
(...) A minha última visita foi ao Convento dos Franciscanos, uma respeitável construção do século XVII, que se tornou famosa por ter sido escolhida por Simon Bolívar para acolher, em 1826, o Congresso Anfictiônico do Panamá. Creio que foram relançadas, ali, as sementes do acalentado sonho pan-americano de Bolívar de uma Grande América, de uma integração continental, com o apoio da Inglaterra e contra a Espanha. Um sonho apenas. Lamentavelmente, nem todos os países convidados compareceram.(1) Na época era chamado O Palácio de Bolívar e considerado o principal monumento nacional." Manoel de Andrade, in " O Bardo Errante", obra memorialista (ainda em redacção) relativa ao tempo do exílio forçado do autor , na América Latina, no final dos anos 60 e início da década de 70, durante a Ditadura no Brasil.
Bibliografia: GARCÍA, Enrique Ruiz. América Latina Hoy – Anatomia de una revolución, Ediciones Guadarrama, S.A., Madrid, 1971, p. 354-355 vol. 1.
GALEANO, Eduardo. Memória do fogo (I) – Nascimentos, Tradução de Eric Nepomuceno, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986, p. 360-361.
(1) Essas sementes não floriram nem frutificaram como sonhou Bolívar, apesar de tantos congressos regionais posteriormente convocados para esse fim. (Leia-se Lima (1847), Santiago (1856), Lima (1874), Caracas (1883), Montevidéu (1888)). Algo semelhante propôs o uruguaio Carlos Quijano em seu livro América Latina: una nación de repúblicas. Contudo, é perseverante imaginar que o sonho bolivariano continue vivo na busca incessante de um código de solidariedade, baseado em ideais de cooperação continental e de relações de igualdade, justiça e fraternidade entre nossos povos. Uma ideia bem diferente daquilo que tirou o sono do Libertador: a doutrina promulgada naquela mesma época (1823) pelo presidente dos Estados Unidos, James Monroe, com o pretexto de defender o continente americano da intervenção europeia: A América (só) para os americanos. Uma ironia diante do bloqueio a Cuba, o embargo à Nicarágua, a invasão da República Dominicana e tantas outras invasões e intervenções ianques.
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