Publicamos, hoje, a terceira e última parte do capítulo " Os Chicanos" do livro de Memórias, " O Bardo Errante", que o poeta e escritor brasileiro Manoel de Andrade está a escrever. A Manoel de Andrade apresentamos o apreço e agradecimento pelo privilégio de poder antecipar alguns dos registos dessa obra.
10.
O Movimento Chicano na actualidade
Até aqui, fez-se uma tentativa de
sintetizar os factos mais significativos da história dos norte-americanos de
origem mexicana, desde a guerra até aos últimos anos. Para a elaboração desse
trabalho foram utilizados alguns livros e uns quantos documentos.
Contudo, quisera dar uma imagem mais
viva e, se possível, analítica do Movimento Chicano. Levado pela curiosidade em
conhecer os alcances desse Movimento, estive na Califórnia durante os meses de
abril e maio do ano passado(1971) e o que reportarei a seguir baseia-se em contactos que tive com estudantes e dirigentes chicanos, em acontecimentos que me foram
relatados e em alguns documentos que me foram facilitados.
11.
A morte de Rubén Salazar
De cada 100 habitantes dos EE.UU. 4
são chicanos, e de cada 100 soldados norte-americanos que caem no Vietname, 20
são de origem mexicana.
A desproporção de chicanos
sacrificados na Indochina foi um dos principais motivos que, na manhã de 29 de
agosto de 1970, levou às ruas do leste de Los Angeles cerca de 30.000 chicanos
que, além disso, protestavam contra um sistema educativo em que 50% de chicanos se vêem obrigados a abandonar
seus estudos; pelos baixos salários pagos à gente de origem mexicana; pela
falta de oportunidade e a discriminação do trabalho; por falta de representação
política; pela violência policial, etc.
A marcha ---
como quase todas as manifestações políticas, culturais e sociais dos
chicanos --- começou num ambiente de alegria e festa. Os
casais levavam consigo os seus filhos. Havia grupos procedentes de Arizona, Novo
México, Texas, Illinois, Utah, de todo o
Estado da Califórnia desde Sacramento até San Diego, e porto-riquenhos da costa
leste.
Quando a imensa multidão chegou ao
Parque da Laguna, iniciou-se o programa organizado pelo Comitê de Chicano
Moratorium. Cantaram-se canções mexicanas e chicanas e, em seguida,
discursariam alguns líderes como César Chávez, Corky González e Rosalio Muñoz.
De repente, viu-se a fumaça das
primeiras bombas lacrimogénicas. As mulheres com seus filhos começaram a
correr, porém de todas as partes do parque surgiam policiais. Meia hora depois
um cinturão policial rodeava o parque. Ninguém podia entrar, nem sair. Angel
Gilberto Diaz foi o primeiro chicano metralhado quando, ao tratar de afastar-se
daquele inferno asfixiante de fumaça, tentou atravessar a barricada levantada
pela polícia para que nenhum carro saísse. Enquanto isso o número de policiais
aumentava. No início, grupos organizados de chicanos repeliram com garrafas e
paus o ataque policial. No entanto, a resistência tornou-se impossível com a
chegada de várias unidades do Departamento de Polícia da Divisão Metropolitana,
conhecida por suas tácticas de brutalidade e treinadas para dominar as
manifestações de massa.
O segundo chicano morto foi Lyn Ward,
que expirou num hospital, ferido pela explosão de uma granada de gás. Em face
do desespero e da confusão, os pais procuravam os filhos, os filhos gritavam
pelos pais, senhoras e meninas vomitavam, rostos banhados de sangue, crianças
perdidas correndo histericamente pelas ruas, e, no meio desse caos, os
policiais golpeando as pessoas sem distinção de idade e sexo. Alguns tentaram
encontrar refúgio nas casas vizinhas ao parque, mas os policiais atiravam as
bombas de gás para dentro das casas, entravam brutalmente nelas e de arrasto retiravam as pessoas.
Algumas
horas depois, quando todos
os manifestantes se haviam dispersados, e uma grande
quantidade de chicanos havia sido aprisionada, o rádio informou sobre a morte
de Rubén Salazar, chefe de informação do Canal 34 de televisão e repórter do
jornal “Los Angeles Times”. A morte de Rubén Salazar foi uma das maiores perdas
do Movimento Chicano. Através dele a informação do Movimento chegava ao
público sob o ponto de vista chicano. Era o único meio com o qual contavam os
chicanos para difundir a mensagem do Movimento para as grandes massas. Salazar
já havia tido sérios problemas devido aos artigos e análises que publicara
sobre o Movimento Chicano. Com a sua morte, o Movimento perdia seu meio de difusão
mais importante
Ao
entardecer daquele 29 de agosto, o Parque da Laguna estava estranhamente
tranquilo. Um cheiro asfixiante flutuava no ar. Garrafas quebradas, comida
derramada, cartazes rasgados, barracas parcialmente destruídas e uma imensa
manifestação abortada. Seu saldo: centenas de prisioneiros, muitíssimos
feridos, três chicanos mortos e mais de um milhão de dólares em danos nas propriedades e comércios de um bairro chicano.
12.
O Movimento Estudantil Chicano
Quase todas as manifestações de
protesto dos chicanos depende fundamentalmente da presença estudantil, e a
organização mais importante nesse nível chama-se MECHA – Movimento Estudantil
Chicano. Está difundida em todas as universidades do sudoeste onde há
estudantes chicanos.
A Universidade é a principal
trincheira da juventude chicana, e o chicano é sobretudo um jovem. Mas sua luta
estudantil é relativamente recente. Cinco anos atrás o número de chicanos matriculados
nas universidades da Califórnia era insignificante. Em 1967, dos 25.000
estudantes da Universidade de Berkeley, somente 78 eram chicanos. Nesse mesmo
ano, na Universidade da California de Los Angeles, dos 26.000 alunos
matriculados, apenas 70 eram de origem mexicana. O último dado é ainda mais
significativo, se considerar que, em Los
Angeles, há mais de um milhão de chicanos residentes.
No entanto, os poucos chicanos que há
cinco anos entraram na universidade, começaram uma campanha a fim de criar
condições económicas e psicológicas para facilitar o ingresso de sua gente na
universidade. A campanha fortaleceu-se com o nascimento do MECHA, em cujas
vitórias está a criação, em cada grande universidade do sudoeste, de um
Departamento de Estudos Chicanos que conta com subvenção oficial e tem
propiciado uma grande quantidade de bolsas de estudos a estudantes de origem
mexicana que viviam no campo. Geralmente cada um desses departamentos publica
um semanário sobre as actividades locais e generalidades do movimento. Há duas
reuniões semanais do MECHA e, além disso, os estudantes, professores e
dirigentes chicanos realizam constantemente encontros estaduais e regionais
para tratar dos aspectos mais variados com que se organiza o movimento.
À parte do ativismo estudantil,
existem outros grupos semiorganizados. Alguns com caráter eminentemente
intelectual, como o “Plan Espiritual del Aztlán”, criado em 1969 na Primeira
Conferência Nacional de Juventude Chicana, em Denver, Colorado. O Plano mostra
o chicano como descendente de uma raça e de uma cultura superior, os antigos
mexicanos. Expressa-se com o amor à sua terra perdida. O Aztlán era o nome que
os aztecas davam a toda região californiana. O Plano se propõe devolver aos
chicanos o seu antigo sentido de comunidade, sua língua, sua música, sua arte,
etc. Está caracterizado por um radical nacionalismo cultural e, entre outras
coisas, propõe a reconquista do território perdido.
Há muitas outras organizações
chicanas, tais como: MAPA, MAYO, LA RAZA UNIDA, CRUZADA DE JUSTIÇA, BOINAS
CAFÉS, etc. Os Boinas Cafés defendem a luta armada; no entanto, pelo que pude
observar, seus militantes carecem de preparação política.
Dentro da actividade cultural,
destaca-se sobretudo o teatro. Tive a oportunidade de assistir ao Segundo
Festival de Teatro Chicano, realizado em abril do ano passado em Santa Cruz,
Califórnia. Entre os grupos presentes contava-se o Teatro Mestiço, de San
Diego; o Teatro do Piolho do Estado de Washington; o grupo de teatro de Santa
Bárbara; o grupo de San Francisco; o teatro camponês de San Juan e o teatro
camponês de Fresno, dirigido por Luis Valdés, o mais destacado autor e diretor
de teatro chicano.
Quase todas as obras teatrais chicanas
refletem o problema da discriminação e da segregação racial e o conflito brutal
entre as duas culturas: uma esmagadora e outra que apenas sobrevive. As obras
de Luis Valdés são, em sua maioría, curtas, cómicas e picantes. Nelas, por um
lado, ridiculariza-se o norte-americano (el gabacho) e os chicanos ianquizados,
e, por outro lado, procura despertar a solidariedade com a causa, o espírito de
luta e a união de todos os chicanos.
Em geral, a literatura chicana é
ainda muito pequena e falta-lhe força como fenómeno cultural. A maioría dos
seus escritores escrevem mesclando o inglês com termos e frases em espanhol.
Quase se pode dizer que os chicanos têm um idioma próprio.
Entre os poetas destacam-se Alurista,
José Montoya, Corky González e outros. Corky González, presidente da Cruzada de
Justiça, em Denver, além de poeta e cineasta, é um dos líderes mais brilhantes
do Movimento Chicano. É o autor de um longo poema chamado “Yo soy Joaquin”,
muito conhecido entre os chicanos. O
poema conta as glórias do povo asteca e mexicano, a perda do território e a
tragédia dos chicanos nos Estados Unidos. Joaquin é um homem que perdeu sua
terra, agonizou com sua cultura pisoteada e se viu envolvido por uma sociedade
estranha; desprezado por ela, explorado por ela, vivendo uma vida absurda e
inumana, num mundo de gentes absurdas e inumanas:
“Yo soy
Joaquín,
perdido en un
mundo de confusión,
enganchado en
el remolino de una
sociedad
gringa,
confundido
por las reglas,
despreciado
por las actitudes,
sofocado por
manipulaciones,
y destrozado
por la sociedad moderna.
(…)Aqui
estoy
ante
la corte de la justicia.
Culpable
por
toda la gloria de mi Raza
a
ser sentenciado a la desesperanza.
(…)Yo
soy Joaquín.
Las
desigualdades son grandes
pero
mi espírito es firme.
Mi
fe impenetrable.
Mi
sangre pura.
Soy
príncipe Azteca y Cristo Cristiano.
YO PERDURARÉ
YO PERDURARÉ
YO
PERDURARÉ"[1]
Entre os prosadores mais conhecidos
destacam-se Sylvio Vallavicencio, Miguel Méndez, Octavio Tomano, Carlos Vélez,
Nick Vaca, Miguel Ponce e outros.
Quanto às publicações chicanas mais importantes,
no Estado da Califórnia, contam-se a revista de atualidades “La Raza”, editada
em Los Angeles e a revista literária “El Grito”, editada em Berkeley pela
Editora Chicana “El Quinto Sol”. “La Raza”, dirigida por Raul Ruiz, um chicano
de primeira linha e aberto à experiência revolucionária latino-americana, é,
com certeza, a mais representativa
revista do Movimento Chicano. Seu papel tem sido muito importante como
orientadora política do Movimento e por seu esforço em aproximar os chicanos às
lutas libertárias da América Latina. É a revista que, na Califórnia, foi a
fundo nas denúncias contra a repressão policial à gente de origem mexicana.”
Manoel de Andrade, in " O Bardo Errante",( obra em laboração)
[1]-Quando, no início de abril de 1971, estive no Segundo Festival de Teatro Chicano de Santa Cruz, na Califórnia, uma jovem atriz, integrante do Teatro Campesino de Fresno, me deu um livreto com o título Y soy Joaquin. Eu ainda não conhecia o extenso poema de Corky González e depois de sua leitura perguntei -lhe o porquê do nome Joaquin, que era muito comum em Portugal e no Brasil, mas não nos países de língua hispânica. Ela me comentou que se dizia que era uma referência a Joaquin Murrieta, uma figura lendária da Califórnia, que segundo uns era mexicano e segundo outros era chileno. Disse-me que sobre ele se contava muitas histórias durante a corrida do ouro, na Califórnia. Que ele era uma espécie de herói popular, um Robin Hood, um bandido e patriota que lutou contra a exploração do trabalho nas minas pelos norte-americanos. Que ele, por ser latino, foi vítima do racismo e da discrimiação por que estavam passando os chicanos e que por isso era um símbolo da luta e resistência contra os ianques.
Na verdade, as façanhas de
Joaquin Murrieta deram motivo para muitos poemas e corridos
mexicanos, livros, filmes e até uma peça de teatro da autoria de Pablo Neruda
chamada Fulgor y
muerte de Joaquín Murieta.
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