"Olho o monte
de páginas que ficará no meu lugar na paz de um campo que tratei sozinho:
resta-me voltar para casa e fechar a porta.
O meu
trabalho está praticamente terminado. Escrevi os livros que queria, da maneira
como queria, dizendo o que queria: não altero uma linha ao que fiz e, se me
dessem mais cem anos de vida em troca deles, não aceitava. Era exactamente isto
que ambicionava fazer. Há uns dez dias acabei o último. Se tiver tempo, e
embora a obra esteja redonda
(sempre
esteve na minha cabeça deixar a obra redonda)
é possível,
seria possível acrescentar uma espécie de post-scriptum. Não sei se vou
fazê-lo. Sai um livro em 2012, para o ano uma colecção destes textozitos, em
2014 o que agora terminei e uma última coleção destas prosinhas e acabou-se. No
caso de continuar capaz farei então a tal espécie de post-scriptum. E, após
isso, ninguém lerá uma só palavra posta por mim num pedaço de papel. Tenho a
certeza do valor da minha obra e orgulho-me dela. Em certa medida, no entanto,
não me considero o seu autor: foi-me ditada e afigura-se-me um pouco desonesto
que o meu nome esteja na capa. O que rodeia a literatura, todas estas traduções,
todos estes prémios, todo o ruído que acompanha o sucesso, nunca foi muito
importante para mim. Não o é nada agora. Olho o monte de páginas que ficará no
meu lugar na paz de um campo que tratei sozinho: resta-me voltar para casa e
fechar a porta. Outros que cuidem dele se o entenderem: já não me diz respeito.
Se há pessoas que olham o que construí como difícil de entender é porque não
compreendem a complexidade da vida, e isso não é culpa minha, é defeito delas.
Von Neumann, o descobridor da teoria dos jogos, enunciou-o claramente há anos,
ao explicar o problema das variáveis vivas e das variáveis mortas. E as
variáveis mortas, tal como ele o demonstrou, são quase inúteis. Basta encostar
o ouvido às coisas e a nós mesmos, encostar com atenção o ouvido às coisas e a
nós mesmos para nos apercebermos disso. O medo de saber apavora-nos. A ideia de
tomar consciência arrepia-nos. Recusamos a possibilidade de viver no interior
de nós mesmos. O facto de um livro contar uma história apazigua o nosso lado
infantil. Não serve de nada salvo para nos tranquilizar. E continuarmos por
fora do que nos inquieta, nos assusta, nos alerta: não escrevi a fim de trazer
paz a ninguém. Não me interessou entreter nem divertir nem agitar bichos de
peluche diante de pessoas crescidas. Fiz livros para adultos de pé e olhos
abertos. Numa conversa com George Steiner, quando eu gabava o Monte dos
Vendavais ele interrompeu-me brandamente
- Não acha um
bocado histérico?
ao princípio
protestei, depois calei-me, depois dei-lhe razão. O facto é que eu não tinha
sabido ler. O facto é que eu tinha, sem dar conta disso, pedido um sininho para
adormecer. Steiner estava certo e eu errado. Erro muitas vezes, aliás. Mas
estou seguro que não errei no meu trabalho, e foi extenuante encontrar a minha
voz tal como cada frase me é, me foi sempre extenuante: é a mão que escreve mas
o corpo inteiro paga caro, e o cansaço físico de cada dia de escrita é imenso.
Para além disso, ao corrigir, metade do que fiz, mais de metade do que fiz,
segue para o lixo. Demasiada carne, demasiada gordura até chegar ao osso. A
partir de agora, nem mais uma entrevista para um jornal que seja, uma
televisão, uma rádio. O que tenho a dizer escrevi-o. Quem tiver olhos que leia,
quem não conseguir ler desista. Todas as frases ditas pelo autor são
supérfluas. E, a maior parte das vezes, pior que supérfluas: erradas. Não é
possível falar racionalmente do que não é racional, explicar o que se passa
antes das palavras, desarticular o que é feito de uma peça apenas e a vida do
autor só para ele mesmo e, na melhor das hipóteses, para mais meia dúzia de
criaturas, poderá ter interesse. A arte, mistério impenetrável, não cabe na
razão lógica e qualquer tentativa de a desmontar será sempre inútil. Se fosse
possível desmontá-la não seria arte. Permanecerá para sempre secreta e
insolúvel. Pode bordar-se em torno mas fora da muralha, nada tem que ver com a
inteligência, a razão, o raciocínio dedutivo: existe em si mesma, por si mesma
e para si mesma, apenas permeável ao inconsciente e, no entanto, ao tocar-nos
no inconsciente muda a nossa percepção do mundo e de nós mesmos em consequência
de um mecanismo que nos escapa. Só o mistério nos faz viver, insistia Lorca, só
o mistério nos faz viver.
Pelo teu amor dói-me o ar
o coração e o chapéu.
Isto,
aparentemente, não significa nada e, no entanto, faz-nos vibrar como cordas.
Julgo que, até hoje, foi Pitágoras quem mais se aproximou da compreensão
visceral da criação. A gente lê-o, sente-o a um pequeno passo da solução e dá
fé que esse pequeno passo nunca será esboçado porque não é possível avançar.
O meu
trabalho está praticamente terminado. O resto fica por vossa conta e eu estarei
muito longe já. É inevitável. Governem-se, se forem capazes, com a chave que
vos deixo, se é que ela existe, ou não existe, ou existem várias, ou existem
muitas, mudando constantemente. De cada vez, por exemplo, que oiço um quarteto
de Beethoven oiço música nova. Como se pode agarrar, digam-me lá, o que
constantemente muda?"
António Lobo Antunes em " Adeus", Crónica publicada na revista Visão, em 25 de Outubro de 2012
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