quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Sobre o Modernismo



Pedagogia do segundo Modernismo

"O chamado Primeiro Modernismo, a que pertenceram as grandes figuras tutelares de Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros,apresentou-se, ostensivamente, não só como uma geração de inovação e total ruptura com o passado e a tradição, mas como possuída de um desprezo completo para com o público: que este entendesse ou não aquilo que os bardos do Orpheu publicavam, era-lhes completamente indiferente. Testemunhos disto abundam nos textos e nas proclamações.
Segundo a gente do Orpheu, tudo quanto era velho, tradicional, era para atirar pela borda fora. Eles vinham inovar, de uma maneira radical, a língua, a literatura, o país e a vida em geral. Em proclamações altamente provocantes, vários elementos ligados ao Primeiro Modernismo disseram-no inequivocamente. Almada Negreiros, por exemplo, com uma brutalidade nua e falsamente infantil, aconselhava: “Dispensai os velhos que [vos] aconselham para vosso bem e atirai-vos independentemente p´ra sublime brutalidade da vida.” E afirmava ainda: “Hoje é a geração portuguesa do século XX quem dispõe de toda a força criadora e construtiva para o nascimento de uma nova pátria inteiramente portuguesa e inteiramente actual prescindindo de todas as épocas precedentes.” E Álvaro de Campos, um dos heterónimos mais vociferantes de Fernando Pessoa, não hesitava em proclamar: “Escrevo rangendo os dentes para a beleza disto, / Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.” Repare-se na expressão “totalmente desconhecida dos antigos”. Eles pretendiam propor uma beleza nova, em total ruptura com o passado. António Ferro, ligado ao Orpheu, antes de se vir a tornar um propagandista do Estado Novo, de Salazar, proclamava com convicção: “O passado é mentira, o passado não existe, é uma calúnia...” E acrescentava, logo a seguir: “Cheira a defuntos em Portugal...” 
Afirmações neste gosto abundam entre os argonautas do Orpheu.Eles estavam convencidos de estarem a produzir uma arte inteiramente nova e, por isso, de mais difícil apreensão por um público vastamente impreparado, mas isso não os preocupava minimamente, ao ponto de nem sequer se sentirem obrigados a um esforço no sentido de se fazerem compreender. A pedagogia, em suma, não era a sua vocação... Numa época de mutações vertiginosas, o território que a poesia explorava ia-se alargando enormemente e a grande velocidade e os nexos lógicos do discurso iam ficando pelo caminho. A poesia, em suma, tornava-se de leitura muito difícil, mas, nem por isso, os modernistas se preocupavam. Pelo contrário, manifestavam um desprezo olímpico pelas dificuldades dos leitores, os quais, é claro, lhes voltavam as costas. Almada, por exemplo, dizia: “Felizmente para ti, leitor, que não sou crítico, razão por que não te chateio com elucidações da Arte de que estás tão longinquamente desprevenido.” Resumindo: apesar de reconhecer que o leitor está “desprevenido”, nem por isso se digna elucidá-lo, para o não chatear...
É contra esta desenvoltura cheia de desprezo aristocrático que os arautos do Segundo Modernismo (José Régio, João Gaspar Simões, Adolfo Casais Monteiro, Guilherme de Castilho) se vão voltar, produzindo , a par de uma obra de criação original, uma obra de crítica e esclarecimento, da qual muito beneficiarão os do Orpheu. Esta vocação pedagógica, particularmente visível em José Régio – que, aliás era professor de Francês e Português – dará aos responsáveis pela revista presença (aparecida em Coimbra, em 1927) um cariz em tudo diferente do que se exibia no Orpheu e no Portugal Futurista
Com o aparecimento da Presença, dirigida originalmente por José Régio, João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca ( este, substituído, em 1930, devido ao seu abandono da revista, por Adolfo Casais Monteiro), instala-se , um discurso crítico, promotor, pedagógico e divulgador dos valores do Primeiro Modernismo, num tom de cautela, de serenidade e de objectividade que em tudo contrasta com as piruetas pirotécnicas e provocantes de Almada, Ferro e outros adjacentes. O chamado Segundo Modernismo traz, pois, consigo, uma vocação pedagógica e, sobretudo, um sentido de proporções e de perspectiva que, ao Primeiro, de todo faltara.
Em 1929, no nº 23 da Presença, Régio – o mais influente director da revista – defendia de modo eloquente a inserção do modernismo no fluir da história cultural do país, algo acrescentando ao passado, sem ter que o renegar. E dizia: “Para se avançar – não é preciso negar o caminho andado. E mesmo... não é preciso senão alargar e multiplicar o caminho andado(...) Esqueçamos esse modernismo meramente actual, portanto efémero e quase só interessante aos olhos dos historiadores, segundo o qual ser modernista é substituir o realismo pelo ultra-realismo, o impressionismo pelo cubismo, etc. etc., isto é, umas imagens por outras imagens, uns assuntos por outros assuntos, um estilo por outro estilo, um gosto por outro gosto, umas leis por outras leis, uns modelos por outros modelos, umas limitações por outras limitações. Bem sei”, concluía Régio, “que estas limitações são inevitáveis (...) Mas a verdade é que quem substitui – nada ganha. Pois paga o que ganha com o que perde.” Tratava-se, pois, segundo Régio, de ganhar sem ter que perder.
A conversa de Régio era, nesse caso, muito mais interessante e fecunda (e inteligente) do que a conversa acerca de radicais cortes ou rupturas com o passado, com que se tinha entretido o circo de Almada, de António Ferro e de outros igualmente amantes mais de piruetas do que de pensamento solidamente fundamentado.
O pensamento dos presencistas, curiosamente, é muito afim da visão do grande poeta inglês T. S. Eliot, que, dez anos antes publicara um pequeno e influente ensaio, “Tradition and the Individual Talent”, no qual propunha, de modo muito parecido ao dos presencistas, a inserção do monumento artístico inovador na tradição cultural existente (de notar ser quase certo os presencistas não conhecerem o texto de Eliot). Eliot dizia, em suma, que cada monumento literário – ou artístico – novo, ao inserir-se na tradição cultural existente, não deixa tudo na mesma: pela sua mera existência de objecto novo, desencadeia uma necessidade de re-arranjo da ordem existente, de modo que esta se torne capaz de acolhê-lo. Não se trata, pois, de se fazer uma ablação irreversível da ordem das coisas vigente, mas sim de a modificar subtilmente, até na sua hierarquia, para que nela possa caber, em posição própria, o objecto estético acabado de criar. Nas próprias palavras de Eliot: “ o que acontece quando se cria uma obra de arte nova é algo que acontece simultaneamente a todas as obras de arte que a precederam. Os monumentos existentes formam entre si uma ordem de coisas ideal, que é modificada por introdução da nova (realmente nova) obra de arte entre eles. A ordem existente está completa antes que chegue a obra nova; para que a ordem persista depois da superveniência da novidade, toda a ordem existente deve, nem que só levemente, sofrer alteração; e, assim, as relações, proporções, valores de cada obra de arte são reajustados em relação ao conjunto; e é isto a conformidade entre o velho e o novo.”
Por outras palavras, Fernando Pessoa não elimina Camões, como não elimina Camilo Pessanha ou Antero – mas provoca um reajustamento da figura do grande épico e lírico na ordem das coisas sempre móvel e reajustável, que é a literatura portuguesa. Camões é ainda Camões mas já não é exactamente o mesmo Camões depois da entrada em palco de Pessoa com a sua Mensagem e não só. Nenhuma grande obra do passado é imune ao deflagrar de energias novas. Mas não é correcto dizer que estas energias actuam fatalmente em sentido pernicioso ou mesmo destrutivo. Modificam mas não destroem. E podem até exaltar.
Com a sua pedagogia cautelosa e reflectida a "Presença" fez mais pela aceitação e compreensão profunda dos argonautas do Primeiro, do que o fizeram estes com a sua pirotecnia frenética e tantas vezes pouco pensada."
Artigo de  Eugénio Lisboa, professor, poeta , crítico literário, ensaísta, cronista . "O Segundo Modernismo em Portugal", Instituto da Cultura Portuguesa, 1977 é uma das obras sobre o Modernismo deste grande estudioso  da  Literatura.

1 comentário:

  1. O "Segundo Modernismo" lembrando o "Primeiro Modernismo"...
    Um belo artigo de Eugénio Lisboa!... E José Régio, da "Presença" também cá está. E vieram outros à conversa, já citados, como Adolfo Casais Monteiro, que haveria de morrer no Brasil, Branquinho da Fonseca, e João Gaspar Simões. Este último, foi o que mais marcou o seu tempo literário, esses anos de crítica literária, feroz e eficaz, onde ele dava (ou não dava...) a sua benção. E esta era importante para se poder singrar nos meios da Literatura. Muito!
    Neste breve comentário trancrevo - com a devida vénia - o parágrafo (o último) do nosso amigo Eugénio Lisboa, sobre o "Segundo Modernismo", por o julgar muito elucidativo e sobretudo conclusivo. - "Com a sua pedagogia cautelosa e reflectida, a "Presença" fez mais pela aceitação e compreensão profunda dos argonautas do Primeiro (Modernismo), do que o fizeram estes com a sua pirotecnia frenética e tantas vezes pouco pensada."
    E constata-se isso!... Muito frenesim, muita movimentação, demasiado "bailado", "tiros" para um e outro lado, ao acaso. Todavia, no fundo, pouca estruturação da parte dos homens do Primeiro Modernismo. Sente-se ainda hoje quando se estuda esse Movimento, alguns "pés de barro", algumas intervenções precipitadas, talvez, e uma certa fragilidade na argumentação. Parabéns a Eugénio Lisboa, porque tocou com o dedo na "ferida", com sabedoria, perspicácia e mestria!... Abraço literário para o Eugénio, com imensa admiração!

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