FIGURAS DE LISBOA
Descrição
Propomo-nos evocar figuras de Lisboa o que é sempre como que
fazer uma espécie de arqueologia da memória.
Efetivamente, «aqueles que se foram da lei da morte libertando»
deixaram na cidade, em termos físicos, poucos vestígios mas o eco do seu exemplo
e da sua obra persistem. E são eles que vamos procurar evocar.
Vamos convidar-vos a colocarem-se no centro da Praça do Rossio e ali, rodando em torno da estátua de D. Pedro IV, assistiremos à passagem
dos séculos e dos seus grandes homens. Veremos passar o Dr. João das Regras, o
advogado da causa de D. João I, que vivia atrás de São Domingos, vigiado por Dom
Nuno Álvares Pereira lá de cima do seu bastião, no Carmo, onde se tinha
enclausurado numa atitude ao mesmo tempo de modéstia e de arrogância ao fazer
frente ao próprio Rei que habitava na colina fronteira.
Praça D. Pedro IV, Rossio
Um século depois, poderemos ver o lançamento da primeira pedra
da construção do Hospital de Todos os
Santos pela mão do próprio D. João II e da sua fantástica
mulher, a Rainha D. Leonor. Esta monumental construção vinha-se juntar a um
complexo que ocupava todo um canto da praça, formado pelo Palácio dos Estaus e pelo Convento de São Domingos. Eles seriam, até ao
terramoto de 1755, um dos ex-libris da cidade tendo passado por aí todos os
grandes viajantes que se sentiram atraídos pela cidade das Descobertas.
No século XVI as cavalariças dos Estaus albergavam elefantes,
girafas e outras alimárias espantosas, servindo ao mesmo tempo de atração e
espelho de um rei que queria associar a sua imagem às muitas partidas do Mundo.
Por aí passaram Clenardo, Cataldo Parísio Sículo, Alexandre de Medicis, os
embaixadores que vieram preparar o casamento da futura Imperatriz Isabel com
Carlos V, os de Saboia quando levaram a Infanta D. Beatriz, e tantos e tantos
outros que se espantavam com as justas entre rinocerontes e elefantes, os negros
de África, os indianos, os japoneses e a miríade de gente que fazia de Lisboa a
primeira cidade verdadeiramente cosmopolita do planeta. Mas também por cá se
pintava, cantava e, acima de tudo, fazia-se poesia. Ali a par de São Domingos,
morava o pintor régio Gregório Lopes e toda a sua parentela que fizera uma
verdadeira escola de pintura. Nos Estaus representavam-se pela primeira vez
algumas peças de Gil Vicente que com muita propriedade ocupa hoje o vértice do
frontão do Teatro D. Maria II. Em
São Domingos, escrevia e predicava Frei Luís de Granada que ali foi sepultado.
Um pouco mais à frente, na Rua das Portas Santo
Antão, foi aprisionado o maior vulto da poesia portuguesa, o
grande Camões.
Dando mais uma volta à estátua, veremos os conjurados de 1640
reunidos no Palácio dos Almadas
conspirando contra os «usurpadores» espanhóis. Passados alguns anos veremos o
Duque de Cadaval, um dos heróis da restauração, mandar construir o seu palácio
do outro lado do Rossio. Com sorte, poderemos assistir à saída festiva de um
«auto de fé» de São Domingos em direção ao Terreiro do Paço sob o olhar
indignado do Padre António Vieira. As pompas do ouro brasileiro e os excessos
cometidos parece terem atraído castigo quando a terra tremeu no dia 1 de
Novembro de 1755.
O fogo que se lhe seguiu, destruindo o resto que ficara de pé,
teve início ali perto do Rossio, no Palácio do Conde
da Ericeira. A praça deveria povoar-se de chapeleiras se a
divisão mesteiral da reconstrução tivesse sido seguida à risca, mas em vez disso
a tradição que já a tinha transformado no centro mundano da capital, levou à
abertura de tascas, e depois cafés, frequentados por todas as tertúlias dos
árcades, o mais famoso dos quais foi sem dúvida Manuel Maria Barbosa du Bocage.
Muitas das anedotas que andam ligadas à sua vida libertina passaram-se, segundo
a tradição, no Nicola e as pinturas
que ornamentam o café parece quererem afirmar estas tradições.
Mas será definitivamente o século XIX que nos vai trazer ao
Rossio o maior número de personagens famosas. De Eça de
Queiroz a Antero de Quental, passando por Abel Botelho... todos por aqui
viveram ou fizeram da praça o centro dos seus romances. Muitos deles foram
eternizados no mais importante retrato de grupo que Columbano pintou ao
reproduzir em tela de grandes dimensões o Grupo do
Leão, afinal um grupo que se reunia no restaurante Leão d’Ouro que ainda hoje lá está, mesmo atrás do
Rossio.
No século XX parecia que a cultura portuguesa borbulhava
diretamente das tertúlias dos cafés do Rossio e eles próprios se tornaram
mostruários das artes que então se produziam. O Café Portugal, o Gelo, o Nicola,
a Brasileira do Rossio, o Martinho, a Suiça, os Irmãos Unidos, eram o poiso
obrigatório e diário de homens tão conhecidos como Almada Negreiros, Fernando
Pessoa, ou Mário de Sá Carneiro, ou, mais tarde, a geração dos chamados
neorrealistas, muito influentes nos anos 50 e 60.
Partiremos para o nosso passeio sempre da Praça do Comércio,
sob o Arco da Rua Augusta, deslocando-nos em três sentidos radiais. Um primeiro,
para oriente, na direção de Santa Apolónia, outro oposto, para ocidente, no
sentido de Santos o Velho e, finalmente outro, que sobe a Avenida da Liberdade
em direção ao Marquês de Pombal e volta aos Restauradores pelo outro lado da
Avenida.
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FIGURAS DE LISBOA (Roteiro 1)
Descrição
Começamos esta busca da memória da
cidade na Praça do
Comércio, sob o Arco da Rua Augusta, virando pelas arcadas à
esquerda para encontrar o Martinho da Arcada. A figura de Fernando
Pessoa (1888-1935) aqui impõe-se, e a presença desse homem
que era muitos num só, parece viva num ambiente cercado de referências em
fotografia e até em azulejo. Logo no bar de entrada deparamo-nos com dois
registos de desenho em traço azul sobre branco lembrando as famosas pinturas que
Almada
Negreiros fez para o restaurante Os Irmãos Unidos. Na sala
do restaurante, são imagens fotográficas do poeta que se distribuem pelas
paredes. Definitivamente, a sua figura ocupa aqui o espaço todo, fazendo
esquecer todos os outros - políticos, intelectuais, conspiradores - que por aqui
passaram desde pelo menos 1782 quando a casa se chamava da neve
italiana.
Prossigamos pela Rua da Alfândega
para encontrarmos o monumental pórtico manuelino da Igreja da Conceição
Velha.
Da antiga Misericórdia de Lisboa
temos o tímpano do pórtico que esteve guardado no interior da Igreja e por isso
conserva em todo o seu esplendor a qualidade do talhe da pedra que «desenha» com
segurança inúmeros rostos de personagens que se abrigam sob o manto da
Virgem.
Entre reis, rainhas, bispos e
papas quis-se ver neles representados Leão X, a própria fundadora das
Misericórdias portuguesas, a grande Rainha D. Leonor (1458-1525), e até D. Manuel
I: a verdade é que se trata de figurações simbólicas onde, se
quisermos, porque não, poderão ser estes contemporâneos da obra. Vale a pena
entrar para ver a antiga capela lateral que pertenceu a uma das mais enigmáticas
personagens lisboetas do século XVI: Dona Simoa, uma negra de São Tomé que
acumulou uma imensa fortuna e que por isso pôde instituir uma capela perpétua
para a salvação da sua alma. Encomendou a Jerónimo de Ruão - o arquitecto a quem
a Rainha D. Catarina de Austria (1507-1578), casada com D. João III e irmã do
Imperador Carlos V, mandou reconstruir a capela-mor do Mosteiro dos Jerónimos -
esta belíssima obra de revestimento de mármores de cores contrastantes, que se
tornou um dos mais importantes exemplares da arquitectura maneirista portuguesa.
Logo adiante encontramos a famosa
Casa dos
Bicos mandada construir pelo primeiro presidente da Câmara de
Lisboa, Brás Afonso de Albuquerque (1500-1580), filho do grande conquistador de
Goa, injustamente esquecido e que foi dos mais importantes intelectuais da sua
época, humanista e grande cidadão. Construiu esta casa dos «Diamantes» para sua
casa de cidade a qual espantou de tal forma a populaça que logo constou que com
a sua imensa fortuna ele colocara uma pedra preciosa em cada bico da fachada.
Daí o aforismo «que não se perca a casa dos bicos».
pormenor da Casa dos Bicos
No século XVI toda a frente
ribeirinha desta zona da cidade cobriu-se de palácios e casas grandiosas. Ao
lado de Albuquerque viviam os Condes de Portalegre, os Duques de Aveiro e os
Condes de Linhares, todos eles aparentados entre si ou com interesses económicos
e políticos comuns. Foi com uma das filhas destes condes de Linhares que D.
Manuel casou o jovem Brás, mandando nessa altura que o seu nome fosse
substituído pelo do pai para que a memória do "Marte da Índia" por ele fosse
sempre perpetuada. Do palácio destes Condes existem ainda vestígios num
cunhal do n.º 64 da Rua do Cais de Santarém onde se vê um brasão encimado por um
leão rampante.
Alfama, o bairro que se estende para detrás desta
fachada de palácio, deve o seu nome às boas águas de nascente que brotam um
pouco por todo o bairro, aí encontraremos muitas fontes e chafarizes de que há
notícia desde a Idade Média, sendo o mais conhecido o Chafariz D’el Rei. Um pouco
mais à frente encontramos o Chafariz de Dentro ou dos Cavalos.
Mas o que mais nos prende a
atenção neste largo é sem dúvida a Casa do Fado e da Guitarra Portuguesa que lhe fica
defronte. Entremos para prestar homenagem aos grandes nomes que honraram com as
suas vozes a canção de Lisboa. São inúmeros os fadistas, em boa hora
representados num painel que fica ao fundo do Museu. Vale a pena avivar a
memória, destacando alguns cujas toadas ainda ressoam na nossa memória. Mesmo
que a listagem se possa tornar exaustiva, todos eles merecem o quadro da glória
e a palma da fama que os vai libertando da lei da morte. Entre os castiços
lembram-se Alfredo Marceneiro, Rodrigo, Hermínia Silva, Natércia da Conceição;
entre os fadistas de revista, Maria José Valério, Vasco Rafael e Tony de Matos;
do fado aristocrata ou de salão podem-se apontar Teresa Siqueira, os Câmara – o
pai Vicente da Câmara e o filho José da Câmara -, Luz Sá da Bandeira, Maria
Teresa de Noronha, João Braga, António Pinto Basto, Tristão da Silva e os irmãos
Câmara Pereira. E, finalmente, as divas: Maria da Fé, Argentina Santos, Cidália
Moreira, Lucília do Carmo (mãe do conhecido Carlos do Carmo), Natércia Maria,
Alda de Castro, Celeste Rodrigues (irmã da maior diva de sempre do fado, Amália
Rodrigues). Tal como a Amália, o fado nunca morrerá, por isso aqui se registam
dois jovens nomes irrefutáveis: Camané e Dulce Pontes. Mas muitos mais se
poderiam referir como Mafalda Arnauth, Maria Ana Bobone, Rodrigo Costa Felix e
outros que farão a glória do fado no século XXI.
Continuando o nosso percurso,
sigamos pela rua do Jardim do Tabaco em passo largo até chegarmos ao
Museu Militar que alberga um verdadeiro panteão de heróis
nacionais.
Uma vez lá dentro olhemos o tecto.
O painel central, pintado por A. de Souza Rodrigues em 1905, apresenta uma
alegoria às descobertas e conquistas, e é emoldurado por uma série de bustos
pintados com aqueles que, aos olhos dos portugueses do início do século XIX,
eram as figuras maiores da nação.
Assim, Vasco da Gama (1469?-1524)
ladeia o Rei D. Manuel, (1469-1521), Dom José (1714-1777) surge na sequência do
Marquês de Minas, e finalmente o grande defensor da identidade nacional, Nuno
Álvares Pereira (1360-1431). O painel do lado direito é todo dedicado a uma
plêiade de famosas figuras do glorioso passado português: Martim Moniz 1147,
Nuno G. de Faria 1373, Duarte de Almeida 1476, os heróis da Índia, D. Francisco
de Almeida, D. João de Castro e D. Duarte de Menezes. O pintor Alves de Sousa,
autor deste painel de 1913, não quis deixar de fazer figurar o lídimo "cantor"
da gesta nacional, Luís de Camões (?- 1580) como não podia deixar de ser, já que
Portugal, país de poetas, escolheu este poeta para símbolo da própria pátria.
Mas sobrou ainda espaço para outra personagem já do século XVIII, Lopo de
Mendonça 1717. Do lado oposto, o painel do tecto foi pintado por M. Oliveira:
vê-se uma homenagem à cidade de Lisboa, e em torno dela novamente grandes do
passado onde se contam o navegador Fernão de Magalhães que, com a sua viagem de
circumnavegação deu o nome ao Estreito, (cª 1480-1521), o Infante D. Henrique
(1394-1460), o Conde de Amarante 1814, Pero da Covilhã 1387, D. João II
(1455-1495), grande impulsionador dos Descobrimentos, Conde de S. Maria 1833 e
Afonso de Albuquerque (1445/1462-1515), herói da Índia.
Roteiros Culturais do CNC, in e-Cultura.pt
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Lisboa é das cidades mais provincianas de Portugal!...
ResponderEliminarPoucos serão os que - por um motivo ou por outro - por lá não passsaram a caminho de qualquer lugar, ou que lá não viveram, mesmo que por escasso tempo.
Todos eles vieram do grande "mundo" rural ou da soalheira e enevoada beira-mar, de um mundo a que se chama a "província", e todos eles transportaram consigo, para ali deixarem, um pouco e às vezes muito mais do que se imagina, muito mais do que "um pouco" da sua província natal, do que em Portugal se chamou "paisagem"...
A vivente - e outrora ridente - paisagem portuguesa.
Portugal, os seus lugares, os seus lamentos, as suas romarias, a sua própria diáspora, e os seus caminhos, onde ao labor e à prática, se encostou o nada, o nulo, um país feito de solidão, em termos de substituição, de um pelo outro, por este último...