Pelo
interesse , pela verdade, pela voz que magistralmente nos representa e pelo
valor literário que contém, transcreve-se-se, aqui, na íntegra, o post que foi publicado
pelo Blogue “Rerum Natura”, ontem, 10 de Setembro .
“De Eugénio
Lisboa, prezado colaborador deste blogue. e que muito o tem enriquecido com os
seus textos, recebi a Carta Aberta que ora transcrevo com o prazer (e,
simultaneamente, amargura) que a sua leitura em mim despertou e, por certo,
despertará nos seus leitores que se identifiquem com muitos dos problemas dela
constantes:
Exmo. Senhor Primeiro Ministro
Hesitei muito em dirigir-lhe estas palavras, que mais não dão do que uma pálida
ideia da onda de indignação que varre o país, de norte a sul, e de leste a
oeste. Além do mais, não é meu costume nem vocação escrever coisas de cariz
político, mais me inclinando para o pelouro cultural. Mas há momentos em que,
mesmo que não vamos nós ao encontro da política, vem ela, irresistivelmente, ao
nosso encontro. E, então, não há que fugir-lhe.
Para ser inteiramente franco, escrevo-lhe, não tanto por acreditar que vá ter em V. Exa. qualquer efeito –todo o vosso comportamento, neste primeiro ano de governo, traindo, inescrupulosamente, todas as promessas feitas em campanha eleitoral, não convida à esperança numa reviravolta! – mas, antes, para ficar de bem com a minha consciência. Tenho 82 anos e pouco me restará de vida, o que significa que, a mim, já pouco mal poderá infligir V. Exa. e o algum que me inflija será sempre de curta duração. É aquilo a que costumo chamar “as vantagens do túmulo” ou, se preferir, a coragem que dá a proximidade do túmulo. Tanto o que me dê como o que me tire será sempre de curta duração. Não será, pois, de mim que falo, mesmo quando use, na frase, o “odioso eu”, a que aludia Pascal.
Mas tenho, como disse, 82 anos e, portanto, uma alongada e bem vivida experiência da velhice – da minha e da dos meus amigos e familiares. A velhice é um pouco – ou é muito – a experiência de uma contínua e ininterrupta perda de poderes. “Desistir é a derradeira tragédia”, disse um escritor pouco conhecido. Desistir é aquilo que vão fazendo, sem cessar, os que envelhecem. Desistir, palavra horrível. Estamos no verão, no momento em que escrevo isto, e acorrem-me as palavras tremendas de um grande poeta inglês do século XX (Eliot): “Um velho, num mês de secura”...A velhice, encarquilhando-se, no meio da desolação e da secura. É para isto que servem os poetas: para encontrarem, em poucas palavras, a medalha eficaz e definitiva para uma situação, uma visão, uma emoção ou uma ideia.
A velhice, Senhor Primeiro Ministro, é, com as dores que arrasta – as físicas, as emotivas e as morais – um período bem difícil de atravessar. Já alguém a definiu como o departamento dos doentes externos do Purgatório. E uma grande contista da Nova Zelândia, que dava pelo nome de Katherine Mansfield, com a afinada sensibilidade e sabedoria da vida, de que V. Exa. e o seu governo parecem ter défice, observou, num dos contos singulares do seu belíssimo livro intitulado “The Garden Party”: “O velho Sr. Neave achava-se demasiado velho para a primavera.” Ser velho é também isto: acharmos que a primavera já não é para nós, que não temos direito a ela, que estamos a mais, dentro dela... Já foi nossa, já, de certo modo, nos definiu. Hoje, não. Hoje, sentimos que já não interessamos, que, até, incomodamos.
Todo o discurso político de V. Exas., os do governo, todas as vossas decisões
apontam na mesma direcção: mandar-nos para o cimo da montanha, embrulhados em
metade de uma velha manta, à espera de que o urso lendário (ou o frio) venha
tomar conta de nós. Cortam-nos tudo, o conforto, o direito de nos sentirmos,
não digo amados (seria muito), mas, de algum modo, utilizáveis: sempre temos
umas pitadas de sabedoria caseira a propiciar aos mais estouvados e impulsivos
da nova casta que nos assola. Mas não. Pessoas, como eu, estiveram, até depois
dos 65 anos, sem gastar um tostão ao Estado, com a sua saúde ou com a falta
dela. Sempre, no entanto, descontando uma fatia pesada do seu salário, para uma
ADSE, que talvez nos fosse útil, num período de necessidade, que se foi
desejando longínquo.
Chegado, já sobre o tarde, o momento de alguma necessidade, tudo nos é
retirado, sem uma atenção, pequena que fosse, ao contrato anteriormente
firmado. É quando mais necessitamos, para lutar contra a doença, contra a dor e
contra o isolamento gradativamente crescente, que nos constituímos em alvo
favorito do tiroteio fiscal: subsídios (que não passavam de uma forma de
disfarçar a incompetência salarial), comparticipações nos custos da saúde,
actualizações salariais – tudo pela borda fora. Incluindo, também, esse papel
embaraçoso que é a Constituição, particularmente odiada por estes novos
fundibulários. O que é preciso é salvar os ricos, os bancos, que andaram a
brincar à Dona Branca com o nosso dinheiro e as empresas de tubarões, que
enriquecem sem arriscar um cabelo, em simbiose sinistra com um Estado que dá o
que não é dele e paga o que diz não ter,para que eles enriqueçam mais, passando
a fruir o que também não é deles, porque até é nosso.
Já alguém, aludindo à mesma falta de sensibilidade de que V. Exa. dá provas, em relação à velhice e aos seus poderes decrescentes e mal apoiados, sugeriu, com humor ferino, que se atirassem os velhos e os reformados para asilos desguarnecidos , situados, de preferência, em andares altos de prédios muito altos: de um 14.º andar, explicava, a desolação que se contempla até passa por paisagem. V. Exa. e os do seu governo exibem uma sensibilidade muito, mas mesmo muito, neste gosto. V. Exas. transformam a velhice num crime punível pela medida grande. As políticas radicais de V. Exa. e do seu robótico Ministro das Finanças - sim, porque a Troika informou que as políticas são vossas e não deles... – têm levado a isto: a uma total anestesia das antenas sociais ou simplesmente humanas, que caracterizam aqueles grandes políticos e estadistas que a História não confina a míseras notas de pé de página.
Falei da velhice porque é o pelouro que, de momento, tenho mais à mão. Mas o sofrimento devastador, que o fundamentalismo ideológico de V. Exa. está desencadear pelo país fora, afecta muito mais do que a fatia dos velhos e reformados. Jovens sem emprego e sem futuro à vista, homens e mulheres de todas as idades e de todos os caminhos da vida – tudo é queimado no altar ideológico onde arde a chama de um dogma cego à fria realidade dos factos e dos resultados. Dizia Joan Ruddock não acreditar que radicalismo e bom senso fossem incompatíveis. V. Exa. e o seu governo provam que o são: não há forma de conviverem pacificamente. Nisto, estou muito de acordo com a sensatez do antigo ministro conservador inglês, Francis Pym, que teve a ousadia de avisar a Primeira Ministra Margaret Thatcher (uma expoente do extremismo neoliberal), nestes termos: “Extremismo e conservantismo são termos contraditórios”. Pym pagou, é claro, a factura: se a memória me não engana, foi o primeiro membro do primeiro governo de Thatcher a ser despedido, sem apelo nem agravo. A “conservadora” Margaret Thatcher – como o “conservador” Passos Coelho – quis misturar água com azeite, isto é, conservantismo e extremismo. Claro que não dá.
Alguém observava que os americanos ficavam muito admirados quando se sabiam
odiados. É possível que, no governo e no partido a que V. Exa. preside, a maior
parte dos seus constituintes não se aperceba bem (ou, apercebendo-se, não
compreenda), de que lavra, no país, um grande incêndio de ressentimento e ódio.
Darei a V. Exa. – e com isto termino –uma pista para um bom entendimento do que
se está a passar. Atribuíram-se ao Papa Gregório VII estas palavras: ”Eu amei a
justiça e odiei a iniquidade: por isso, morro no exílio.” Uma grande parte da
população portuguesa, hoje, sente-se exilada no seu próprio país, pelo delito
de pedir mais justiça e mais equidade. Tanto uma como outra se fazem, cada dia,
mais invisíveis. Há nisto, é claro, um perigo.
De V. Exa.,
atentamente,
Eugénio
Lisboa
Eis, nesta tarde, uma Carta Aberta de Eugénio Lisboa, própria e qualificada em relação ao momento presente que Portugal e os Portugueses atravessam!... Um texto também cultural (porque não?!...), uma diatribe pungente, a sangrar, porque há testemunhos vivos que sangram e valem a melhor obra científica ou literária que alguma vez pudesse ter sido escrita! Um texto que através do eloquente verbo de Eugénio Lisboa, revela e eleva a voz de um Povo inteiro!... Uma carta aberta e rica em desespero, e em palavras heróicas, em palavras dignas do dantesco drama para onde nos atiraram, da tragédia que penosamente choramos e atravessamos, envolta numa tempestade sem bonança que se anuncie, ou sequer algum porto de abrigo à vista... Um país e um povo indignados, que parecem aparentemente conformados, mas estão ainda em estado de choque, violentamente "trucidados". Um povo ao qual até já convidaram a emigrar, a sair daqui para fora, já o incitaram a uma pura e imprevisível errância pelos inviáveis caminhos do mundo!... A este país e a este povo, Eugénio Lisboa com a coragem e a abnegação que lhe conhecemos soube dar - na hora presente - voz e também a vez!... É tempo!... Parabéns, Eugénio, por este relevante e longo grito de pasmo, indignação e revolta!... Porque é também o grito de nós todos!
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