quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

O Caminhante

" O homem só ensina bem o que para ele tem poesia"
Rabinadranath Tagore


O Caminhante
Não me perguntes
O que é salvação
Ou onde a encontrar,
Não sou investigador, mas apenas poeta...
Vivo agarrado a esta terra.
Perante mim corre o rio da vida...
Levando na sua corrente
Luz e sombra, bem e mal,
Ganhos e perdas, lágrimas e risos,
Coisas que se entrelaçam
E se esquecem!
Sobre as suas águas
A manhã chega em profundos matizes,
O ocaso estende o seu véu carmesim,
E os raios lunares caem como o suave tacto de uma mãe.
Na noite escura
As estrelas elevam as suas orações;
Sobre as suas ondas
A madhuri oferece os seus dons,
E as aves soltam os seus cantos.
Quando ao ritmo das ondas
Silencioso dança o meu coração
Então nesse ritmo
Estão os meus limites e a minha liberdade.
Não desejo conservar nada
Nem apegar-me a nada.
Desatando os nós da união e da separação,
Quero flutuar com o Todo
Içando as minhas velas ao vento que paira.

Oh, grande Caminhante!
Para ti abrem-se os dez caminhos
Nos confins da terra,
E não tens templo, nem céu,
Nem limite final.
A cada passo tocas o chão sagrado.
Caminhando a teu lado, oh, Incansável!
Encontro a salvação
No tesouro do caminho.
Em luz e sombra,
Nas páginas sempre novas da criação,
Em cada novo instante de dissolução
Ouve-se o ritmo das tuas danças e canções.
Rabinadranath Tagore, in “Poesia”, tradução de José Agostinho Baptista, Assírio & Alvim, 2004 – documenta poetica

Miguel Torga teceu ao longo da sua vida um escrita diarística que constitui um valioso e multifacetado património literário. Composto por textos em prosa e por textos poéticos, ora nos intima pela transcendência temporal que encerra, ora nos remete para o tempo real da escrita , o quotidiano do autor. E assim é, quando morre Rabinadranath Tagore. Eis o que anotou no seu Diário I:
" Coimbra, 8 de Agosto de 1941 - Morreu ontem Rabindranath Tagore. Nos jornais , entre peças de artilharia e aviões, a sua máscara cheia de humanidade e santidade veio acicatar em mim este danado problema da salvação. Não da salvação em Deus ou em qualquer paraíso. Da salvação neste mundo, de terra, com homens e com paixões. Veio agudamente dizer-me que ou uma , ou outra. Ou se escolhe como ideal um S. Francisco de Assis a rasgar-se nas silvas e a tratar de tordos, ou não há outro remédio senão a gente integrar-se no movimento universal desta gigantesca máquina moderna, e fazer nela de parafuso, como mostrou Chaplin. Assim, divididos, com luz e sombra na alma , vestidos e despidos, ao mesmo tempo como frutos mal descascados, é que não. Assim é morrer todos os dias." Miguel Torga, in " Diário I " , Ed. Círculo de Leitores

1 comentário:

  1. A emoção percorre-nos... Imigra pelo corpo adentro, aconchega-nos a alma, cobre-nos de panos, de vestes franciscanas, daquele burel duro e arisco para o corpo, e olha-nos de soslaio, e por fim remete-nos, joga-nos ao caminho, em busca de uma grande explicação do Universo. E isso, só essa grande explicação do Universo nos interessa. Todavia, deixa-nos como esmola no côncavo das palmas das mãos, uma pequena dose, de uma doce esperança como se a felicidade estivesse em as olharmos, a ambas, continuamente, permitindo que o tempo deslizasse, aguardando um qualquer e inevitável ponto de salvação!... Rabinadranath Tagore enche-nos das suas convições, mas Torga - mais terra a terra - Torga não nos deixa voar demasiado alto! E ainda bem. Enquanto isto, a emoção, a poesia ainda nos estremece, nos volve, nos impregna... O fluir dos dias, o aflorar dos sentimentos.

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