Não conhecias esse reino
essa cidadela de detritos, pressentimentos e punhais
essa arquitetura vertical, opaca e silenciosa
essas casas que não falam
esse outono permanente
esse calendário de incertezas
esse abismo se adentrando pelo tempo
suas sombras soluçantes
seus indiferentes passageiros
e esta penumbra de tarântulas, teias e domínio.
Vinhas dos litorais do sul
de caminhos claros e águas transparentes.
Convivias com a linha do horizonte
e o encanto assobiava nos teus lábios.
Vinhas dos diálogos calorosos
de gestos francos e de sonoras vizinhanças.
Agora aqui estás...a suportar a inconsumada infância
teu cálice e tua sede
tua âncora enterrada nas areias da saudade.
Desterrado do teu mundo mais real
caminhas com cautela nesse mapa do espanto
avançarás, contudo...à revelia das perplexidades, avançarás...
na labareda dos teus gestos, avançarás...
avançarás e contudo avançarás sabendo que essa existência é o teu exílio.
Exilado pela violência diária e planetária
pela sorte desigual das criaturas
pelo desamparo que suplica em cada esquina
Exilado pela audácia da maldade
pelas sombras que espreitam os teus passos.
Exilado pela desesperança dos povos oprimidos
pela agenda ensangüentada dos vencidos
e por saberes que há um homem-bomba programado pra explodir.
Exilado por uma mídia alienante
pelo varejo desse shopping global que é o mundo
Exilado pelos falsos criadores da “beleza”
por essa passarela de desfiles e aparências
exilado por esse hedonismo insinuante
e pelo estupro público da decência.
Exilado pelos trustes e a tirania da cultura
pelo marketing da irreverência e do deboche
e por essa satânica sonoridade.
Exilado pelos códigos da impunidade
pela fisiologia plural da corrupção
pela cínica retórica do poder
e pelo odor insuportável das nossas “eminências”.
Exilado numa Terra devastada
na agonia que bóia sobre as águas
e no martírio da seiva incendiada.
Exilado por que não tens escolha
por que um átomo de urânio poderá aniquilar-te
exilado porque todos somos responsáveis
exilados pela impotência ante a fome e a miséria do mundo.
Exilado como tantos outros anônimos exilados...
exilados como tu, no recinto sincero e inegociável da consciência.
Mas tu não viverás no minguante
porque teus olhos não conhecerão a mortalha
e porque a eternidade não é uma fantástica charneca.
Por que tu habitas o território indevassável da beleza
e a poesia é a tua fonte sonora e transparente
a tua voz de prelúdio e sinfonia.
Água e linfa é o teu canto
e é relva, é caule e é semente
é o teu lírio solitário, teu delírio
tua senha inviolável para o encanto
tua militância e o teu despojamento.
É o teu amor maior
porque é o teu peixe e o teu pão multiplicado
o teu abraço solidário de sobrevivente
teu incessante garimpar
uma alquimia é o teu cantar
panacéia, ambrosia, ‘a palavra essencial’
o teu mais doce idioma e o teu deslumbramento
teu porto, tua rua, tua praça principal.
É o teu sonho sempre vivo e navegante
um albatroz voando sobre o mar,
nas asas peregrinas da esperança,
ontem, hoje e sempre a navegar.
Manoel de Andrade, Curitiba, Agosto de 2005, in “ Cantares”, Ed. Escrituras, S.Paulo, Brasil
O nosso "Exilado", de Soares dos Reis, em escultura - captando um momento admirável e comovido - imagem do exilado sofrido, desgastado em choro e amargura, corpo em atitude de auto-abandono, busto descaído, redime de um modo sublime toda a angústia, toda a dor, toda a incerteza que exala deste poema de Manoel de Andrade, uma voz importante da Poesia Brasileira dos nossos dias.
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