Maputo, capital de Moçambique |
Moçambique – 30 anos de Independência
No passado, o futuro era melhor ?
por Mia Couto
"Nasci e cresci numa pequena cidade
colonial, num mundo que já morreu. Desde cedo, aprendi que devia viver contra o
meu próprio tempo. A realidade colonial estava ali, no quotidiano, arrumando os
homens pela raça, empurrando os africanos para além dos subúrbios. Eu mesmo,
privilegiado pela minha cor da pele, era tido como um “branco de segunda
categoria”. Todos os dias me confrontava com a humilhação dos negros descalços
e obrigados a sentarem-se no banco de trás dos autocarros, no banco de trás da
Vida. Na minha casa vivíamos paredes-meias com o medo, perante a ameaça de
prisão que pesava sobre o meu pai que era jornalista e nos ensinava a não
baixar os olhos perante a injustiça. A independência nacional era para mim o final desse universo de injustiças. Foi
por isso que abracei a causa revolucionária como se fosse uma predestinação.
Cedo me tornei um membro da Frente de Libertação de Moçambique e a minha vida
foi, durante um tempo, guiada por um sentimento épico de estarmos criando uma
sociedade nova.
No dia da Independência de
Moçambique, eu tinha 19 anos. Alimentava, então, a expectativa de ver subir num
mastro uma bandeira para o meu país. Eu acreditava, assim, que o sonho de um
povo se poderia traduzir numa simples bandeira. Em 1975, eu era jornalista, o
mundo era a minha igreja, os homens a minha religião. E tudo era ainda
possível.
Na noite de 24 de Junho, juntei-me a
milhares de outros moçambicanos no Estádio da Machava para assistir à
proclamação da Independência Nacional, que seria anunciada na voz rouca de
Samora Moisés Machel. O anúncio estava previsto para a meia-noite em ponto.
Nascia o dia, alvorecia um país. Passavam 20 minutos da meia-noite e ainda
Samora não emergira no pódio. De repente, a farda guerrilheira de Samora
emergiu entre os convidados. Sem dar confiança ao rigor do horário, o
Presidente proclamou: “às zero horas de hoje, 25 de Junho...“. Um golpe de
magia fez os ponteiros recuarem. A hora ficou certa, o tempo ficou nosso.
Não esqueço nunca os rostos
iluminados por um irrepetível encantamento, não esqueço os gritos de euforia,
os tiros dos guerrilheiros anunciando o fim de todas as guerras. Havia festa, a
celebração de sermos gente, termos chão e merecermos céu. Mais que um país
celebrávamos um outro destino para nossas vidas. Quem tinha esperado séculos
não dava conta de vinte minutos a mais.
Trinta anos depois poderíamos ainda fazer recuar os ponteiros do tempo? A mesma crença mora ainda no cidadão
moçambicano? Não, não mora. Nem podia morar. Em 1975, nós mantínhamos a
convicção legítima mas ingénua de que era possível, no tempo de uma geração,
mudarmos o mundo e redistribuirmos felicidade. Não sabíamos quanto o mundo é uma pegajosa teia onde uns são presas e
outros predadores.
Trinta anos é quase nada na história
de um país. Estamos já distantes da injustiça colonial. Mas estamos ainda longe
de cumprir o sonho que nos fez cantar e dançar na noite de 25 de Junho. Uma
parte dessa expectativa ficou por realizar. Hoje já não acorreríamos com a
mesma fé para celebrar uma nova anunciação. Mas isso não quer dizer que estamos
menos disponíveis para a crença. Estaremos, sim, mais conscientes que tudo pede
um caminho e um tempo.
Poderemos recorrer a explicações,
apontar dedos acusadores. Tudo isso será pouco produtivo. Não se pode esperar
que um país saído do atraso da dominação colonial possa realizar aquilo que
velhas nações independentes estão ainda construindo. Moçambique está aprendendo
a ser soberano num mundo que aceita muito pouco a soberania dos outros. O céu
que parecia infinito foi ficando estreito para as chamadas pequenas bandeiras.
No mesmo ano em que se desintegrava
o império colonial português, em 1975, os Estados Unidos da América eram
derrotados no Vietname. O tempo parecia correr a favor dos povos “pequenos”,
capazes de enfrentar a arrogância dos poderosos. Essas vitórias criaram a
ilusão de que um mundo mais justo estava despontando. Mas o sistema mundial
cedo se reajustou desses revezes. A Independência de Moçambique teve que
enfrentar uma dualidade: representou uma ruptura com o colonialismo mas, ao
mesmo tempo, funcionou como um passo para uma maior integração num sistema
capitalista que se globalizava. A essa condição ambivalente não poderíamos
escapar.
Meus senhores e minha senhoras,
Caros amigos
No meu romance Terra Sonâmbula criei
um personagem que, por nascer no dia da Independência, a vinte e cinco de
Junho, foi baptizado de Junhito. A história decorre no decurso da nossa guerra
civil que se prolongou durante 16 anos.
Certa noite, o pai de Junhito é
assaltado por um pressentimento: o seu filho iria morrer em breve. Era isso o
que a guerra reclamava: a morte desse que nascera em Junho. Para salvar o
filho, a família resolveu transferi-lo para a capoeira que ficava no quintal.
Ali Junhito aprenderia a comportar-se como as galinhas, comendo as sobras e
dormindo ao relento. Resignado a sobreviver sem glória, sem brilho, sem
substância.
Junhito foi-se tornando numa sombra
e, em casa, os familiares estavam proibidos até de mencionar o seu nome. A mãe,
mesmo ela, parecia conformada. Contudo, às escondidas da noite, ela visitava a
capoeira. Sentava-se no escuro e cantava uma canção de embalar, a mesma que
servira para adormecer os outros irmãos. Junhito, de início, acompanhava a mãe
no canto. Mas depois, o menino já nem sabia soletrar as humanas palavras.
Esganiçava uns cóós e ajeitava a cabeça por baixo do braço. E assim
adormecia, sonhando que, certa vez, teria sido um homem.
A metáfora no romance é simples,
quase linear. Na altura, eu denunciava a
nossa progressiva perda de soberania, e uma crescente domesticação do nosso
espirito de ousadia. Poderíamos ser nação mas não demasiado, poderíamos ser
povo mas apenas se bem comportado.
Num processo difícil e conflituoso, Moçambique criou a
reputação de ser um caso de excepção em África. Esse bom-nome, devo dizer, é
merecido. Esse prestígio foi conquistado, não é uma prenda de nenhum
paternalismo. Fomos capazes de produzir a Paz. Fomos capazes de criar
democracia formal, de construir estabilidade e de garantir liberdades de
expressão e de pensamento. Tenho orgulho nesse processo. Mas tenho também
receio. Porque o caminho que percorremos não foi exactamente escolhido por nós,
nem está sendo testado à medida da nossa vontade. O nosso êxito não pode
continuar a ser medido apenas pelo sucesso da aplicação de um directório de
receitas políticas e financeiras. Ao contrário, deveríamos ser valorizados pelo
modo como repensamos criativamente o nosso lugar no mundo.
Nos gloriosos anos da luta de
libertação nós gritávamos “Independência ou Morte, Venceremos”. Hoje sabemos: a
independência não é mais do que a possibilidade de escolhermos as nossas
dependências. Na década de 70, o mundo oferecia a possibilidade de diferentes
opções e alianças estratégicas. Hoje as economias nacionais perfilam-se perante
um modelo sem alternativa. Escolhemos o que outros escolheram por nós. Uma
parte da nossa alma foi já, mesmo sem o sabermos, conduzida para a capoeira e
ali esquece a irreverência, a originalidade e o desejo de ser único.
A redução da soberania não é um
processo que esteja atingindo especificamente Moçambique. É um processo
generalizado. Todas nações são hoje menos nacionais, todo o cidadão é menos
dono do se mesmo. Uns dizem que, agora, somos todos mundo. Mas ninguém pode ser
do mundo se não tiver a sua pequena aldeia. "
Excerto do Discurso pronunciado por Mia Couto, em Deza Traverse, Suíça, nos 30 anos de independência de Moçambique, em 16 de Junho de 2005.
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