Ser livre é um imperativo que não passa pela definição de nenhum
estatuto. Não é um dote. É um dom.
Miguel
Torga
A liberdade é um dos dons mais preciosos que o céu deu aos homens. Nada a iguala, nem os tesouros que a terra encerra no seu seio, nem os que o mar guarda nos seus abismos. Pela liberdade, tanto quanto pela honra, pode e deve aventurar-se a nossa vida.
Miguel de Cervantes, (29 de Setembro de 1547- 22 de Abril de 1616), "Dom Quixote".
O
afinador de palavras apresentou-se ao fim do dia. A luz, obumbrada pelo ocaso,
escondia as cores que sempre exibia. Era um aparecimento estudado. Sorria com
alguma astuta ingenuidade, não fossem descobrir que tudo fora
planeado. A quoi bon, o jogo das palavras
pertencia-lhe.
Nesse
dia, vestira o azul. Fora um labor infindável. Vieram tantas que ficara
exausto. Tinha sido uma revelação. Não era que havia um ror de
palavras a acreditar no impossível.
O azul
era a cor da utopia. Todas aquelas palavras que tinham lançado acordes,
que poetavam, que esgrimiam o som libertário para uma nova humanidade, que
carregavam o sonho de um mundo justo se enfileiraram para que as afinasse. Outras
ainda, mal alinhadas nas letras que as faziam nascer, vinham trôpegas à espera
de um elixir que as fortalecesse. Só ele conhecia os poderes do azul. Só
ele sabia quem o podia vestir. A autenticidade revelava-se a um pequeno
lançar de olhos. Ficou atónito com tanta palavra genuína. Que fazer se o dia
tinha cronómetro? E ele que se exigia demais. Como dizimar tanta maleita
inesperada?
Frágeis e
desamparadas rogavam, com assertiva doçura, uma recuperação. O azul
era melodicamente gentil, intrinsecamente harmonioso. Fugia ao aparatoso, ao
ruído dissonante da exigência. Elas, as palavras, queriam não um remendo,
não um penso que se acomodasse às circunstâncias desse tempo crísico,
dessa época infame. Não . Ouvira, límpido e nítido, sem qualquer
vacilação, um rotundo e ardente não. Que
burilasse. Que se servisse de um cinzel e as esculpisse sem demora, mas
para todo o sempre.
Qual
folha caduca? Que pensamento abstruso. O Outono acontecia apenas na
natureza. Palavras são palavras. Têm vida própria. Forma definida e lugar no
repositório das nações. E sabia-se. Era um dado categórico. E
o azul identificava as palavras que acreditavam no impossível.
Trabalhou.
Recuperou. Cinzelou. Remendou. O dia prolongou-se até que a cor se tornou
invisível. Muitas palavras ficaram prostradas no chão, quando se obscureceu.
Nada mais podia fazer. Sem os raios do sol, o azul tornava-se volátil.
Desaparecera na magia do insondável poder da luz.
Amanhã
seria outro dia. Vestiria também uma outra cor. Afinaria outras palavras. O
azul teria de esperar pela roda do tempo.
Agora,
escurecia. A noite protegia. Guardara uma única palavra. Trazia-a no bolso.
Vinha redonda . A sorrir para quem a esperava, a espargir um odor
magnificente. Que azul luminoso a vestia. Era única e imperdível. Fora
difícil restabelecê-la. Com ela estavam associadas muitas outras
palavras . Não eram visíveis. Mas compunham-na .
Uma
sinfonia soltava-se, audível apenas para ele: a sinfonia da
criação. Desconhecida, majestosa e sedutora. Nem ao fluir, a lembrança dos sons
do Oratorio de Haydn se apunha. Surgiam
diferentes, apesar de produzidos pela estética do belo e sustentados por um
denominador comum. Separava-os a sonoridade dos instrumentos. Era uma
sinfonia de acordes únicos, heróicos e gloriosos. Uma
sinfonia que se erguera do caos, do nada informe que debruava o vazio.
Explodia, alargando-se, em eufónicos e imparáveis movimentos, para lhe
encher o corpo e a mente de novas forças, de diferentes vontades que
teria de partilhar.
Vinha com
uma palavra forte. Sabia-o. Vira-a por dentro. Tinha as letras bem desenhadas.
Nove letras em sincronia perfeita. Ficaria para sempre, como a saudade das
coisas felizes. Deixaria de lhe pertencer, logo que fosse apresentada.
Seria de todos e para todos.
Com leveza
e disciplinada ternura, começou a retirá-la devagarinho. À medida que
saía, a noite transformava-se. Tomava-a um novo e estranho
esplendor. E quando a desnudou e a mostrou inteira , o brilho intenso da
Liberdade iluminou os rostos e encheu de promessas o coração de
cada um.
Assim se
cumpria, naquele dia, o sonho que veste o azul.
Maria José Vieira de Sousa , in "O Afinador de Palavras", pp.11, 12
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