O poeta fala a todos os homens, daquela outra vidaque eles sufocaram e esqueceram. Edith Sitwell
«Passa este ano o centenário de um
grande lírico português – Reinaldo (de Azevedo e Silva) Ferreira – mais
simplesmente conhecido como Reinaldo Ferreira, como o seu pai, o notório e
talentoso Repórter X. Como nem só do centenário de Saramago vive o homem, sendo
até provável que, dentro de não muito tempo, Reinaldo seja uma presença mais
viva e assídua, para os leitores, do que o autor de MEMORIAL DO CONVENTO,
talvez não fosse má ideia assinalar o centenário do nascimento deste grande
lírico português, nascido em Barcelona, em 1922, e falecido em Lourenço
Marques, em 1959. Malhas que o império tece.
Dizia Jean Cocteau que os poetas são,
quase sempre, criaturas muito pouco poéticas. Reinaldo Ferreira, com a sua
cabeça de fauno bom e afectuoso, era a personificação do poeta, mesmo fora da
poesia escrita. Bondoso e mesmo generoso até dizer chega, desinteressado do
dinheiro que ganhava com o seu talento, incapaz de fazer mal a uma mosca,
contava-se dele esta história exemplar: descuidado como era e vivendo sozinho,
guardara na gaveta de uma mesa da cozinha, os papéis com os seus poemas
manuscritos. Um dia, abrindo a gaveta, achou-a vazia. Chamou o empregado
africano e perguntou-lhe se ele tinha mexido naquela gaveta. Ele respondeu que
deitara tudo fora por pensar que eram papéis velhos e sem préstimo. A única
reacção do poeta foi encolher filosoficamente os ombros e dizer: “Lá se foram
sete anos de trabalho…” E nem sequer repreendeu o rapazinho. Este seu
comportamento vale volumes de poesia.
Tive o privilégio de estar com
Reinaldo Ferreira, em Lisboa e em Lourenço Marques. Era um companheiro
inesquecível e um conversador extraordinário. Fazia teatro no Rádio Clube de
Moçambique, escrevia canções para marchas populares e revistas musicais, porque
tinha grande facilidade de improvisação. Mas quando as jogava a sério, era de
um teimoso perfeccionismo, que deu, aos editores da sua poesia póstuma, um
trabalho infernal, para decidirem qual das várias versões de um poema era a
definitiva.
Outra história que gostava de aqui
contar é esta: tendo-lhe sido diagnosticado, em Lourenço Marques, um cancro nos
pulmões, aos 37 anos, foi a Joanesburgo, tentar uma opinião que lhe desse
esperança. Ficou em casa da que viria a ser a minha grande amiga, Dianne
Lidchi, bela pintora e mulher endinheirada. Contou-me ela que ficou muito
impressionada com o comportamento de Reinaldo, porque, na noite do dia em que
ele recebeu a sentença de morte, da parte do médico sul-africano, esteve todo o
tempo a participar numa reunião que Dianne organizara em sua honra, exibindo
uma brilhante convivialidade, como se nada de extraordinário lhe tivesse
acontecido. Dianne Lidcchi ficou tão siderada com a sua coragem e o seu panache,
que fez alguns retratos dele, dos quais sou hoje possuidor. Um deles serviu
para a capa da primeira edição dos poemas, feita em Lourenço Marques, a
expensas da Imprensa Nacional e graças ao esforçado labor de três amigos.
A poesia de Reinaldo foi imediatamente
saudada, após a sua publicação, em Lourenço Marques. Figuras como José Régio ou
David Mourão-Ferreira logo o saudaram como grande poeta português de qualquer
tempo. No Brasil foi saudado por críticos e professores universitários, tendo
um deles afirmado alto e bom som que Reinaldo Ferreira era o maior poeta
português do século XX, logo a seguir a Fernando Pessoa, o que enfureceu Jorge
de Sena, que reclamou esse lugar para si próprio. Mas, quando, em 1972, passou
por Moçambique, pediu-me encarecidamente que lhe arranjasse a primeira edição
dos POEMAS, do malogrado poeta. Sena era colérico mas não era mesquinho. Os
famosos Jograis de S. Paulo logo o incorporaram no seu reportório.
Há muita gente, sobretudo sociólogos e
políticos, para não falar em economistas, que são de opinião que a poesia não
serve para nada. Há não muito tempo, um conhecido sociólogo dizia, preto no
branco, que essa coisa das artes e letras era coisa para se ensinar fora das
horas normais de aulas. A epígrafe roubada à poetisa inglesa, Edith Sitwell, de
algum modo responde a esse tipo de enormidades. Mas, já agora, junto e termino
com esta admirável reflexão do grande poeta Dylan Thomas: “Um bom poema é um
contributo para a realidade. O mundo nunca mais fica o mesmo, desde que um bom
poema lhe é acrescentado.”»
Eugénio Lisboa, 25.10.2022
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