Haverá
sempre Guerras?
por Anselmo Borges
"1. Quando olho para a tragédia que se
abateu sobre a Ucrânia: bombas atrás de bombas, milhões de refugiados, valas
comuns, mortos e mais mortos, crianças afogadas no pânico, mulheres sem
palavras para chorar e gritar os horrores, hospitais, creches, escolas destruídos,
ruinas, mais ruinas, um mundo a desabar, ameaças de guerra nuclear..., só
poderia desejar, do fundo do coração, poder responder: Não, nunca mais haverá
guerra. Mas sei que não é assim. Haverá sempre guerras, a não ser que se desse
uma conversão radical da humanidade.
Neste sentido, há um texto que me foi
enviado, cujo autor desconheço mas com o qual estou de acordo, até porque
encontrou as palavras certas para descrever este mundo de loucura. Reza assim:
“Nenhuma guerra tem a honestidade de confessar: ‘Eu mato para roubar’. As
guerras invocam sempre motivos nobres: matam em nome da paz, em nome de Deus,
em nome da civilização, em nome do progresso, em nome da democracia e, por
causa das dúvidas de nenhuma destas mentiras ser suficiente, aí estão os meios
de comunicação dispostos a inventar inimigos imaginários para justificar a
transformação do mundo num grande manicómio e um imenso matadouro. Em Rei Lear, Shakespeare escreveu que neste
mundo os loucos guiam os cegos, e, quatro séculos depois, os senhores do mundo
são loucos enamorados da morte que transformaram o mundo num lugar onde a cada
minuto morrem de fome ou doença curável dez crianças e a cada minuto se gastam
três milhões de dólares, três milhões de dólares a cada minuto, na indústria militar,
que é uma fábrica de morte. E as armas exigem guerras e as guerras exigem
armas, e os cinco países que dominam as Nações Unidas, que têm direito de veto
nas Nações Unidas, acabam também por ser os cinco principais produtores de
armas. A gente pergunta: ‘Até quando? Até quando a paz do mundo estará nas mãos
dos que fazem o negócio da guerra? Até quando continuaremos a acreditar que
nascemos para o extermínio mútuo e que o extermínio mútuo é o nosso destino?
Até quando?’ “.
2. O filósofo I. Kant escreveu que o ser
humano se defronta com três impulsos fundamentais: o prazer, o poder e o ter.
Por mim, penso que o mais forte é o poder enquanto domínio. De facto, o ser
humano é carente e confronta-se com a morte, que o confronta com o nada.
Através do poder, de poder em poder, cada vez com mais poder, alcançaria a omnipotência
e mataria a morte.
Pascal, o grande Pascal, o matemático
eminente, uns dos maiores de sempre, e também um dos maiores cristãos europeus
de sempre, viu bem quando escreveu que a constituição do ser humano mora ali
algures entre “le rien et l’infini” (o nada e o infinito). Por isso, a mais
poderosa tentação, desde o início da humanidade, é a omnipotência. Embora se
trate de uma estória mítica, ela diz o essencial: no Génesis, a serpente voltou-se
para Eva e disse-lhe que, apesar da proibição por Deus, se comessem do fruto
proibido, seriam como Deus, alcançariam a omnipotência. E deu a Adão, e ela
também comeu. E aí estão as trágicas consequências: foram expulsos e, logo a
seguir, Caim matou o irmão, Abel, inaugurando uma torrente de sangue sem fim.
Com o poder, vem o ter e cada vez mais
teres, porque o desejo de ter é insaciável. E os teres precisam de ser
aumentados sempre mais e defendidos, e aí estão a violência e a guerra, que,
paradoxalmente, aumentam o poder e o ter. Neste nosso tempo, os gastos com
novas armas rondam os dois milhões de milhões (2.000.000.000.000) de dólares,
com a lógica de que as armas exigem guerras e as guerras exigem armas, também
para gastar o armamento velho e produzir novas armas.
3. O poder fascina de tal modo que até
há bem pouco tempo se cantava nas igrejas a Deus como “Senhor Deus dos
exércitos” — aliás, ainda há um bispo das forças armadas, mas não um bispo da
saúde e da cultura...— e a maior traição da Igreja foi ter-se transformado numa
instituição de poder.
Jesus tem duas advertências
essenciais. “Não podeis servir a Deus e a Dinheiro”. Ele conhecia bem a
importância do dinheiro — não passou a maior parte da vida a trabalhar? —, mas não se pode adorar Dinheiro
(com maiúscula). Significativamente, os Evangelhos foram escritos em grego, mas
mantiveram duas palavras em aramaico, a língua materna de Jesus: Abbá, Paizinho
(era com esta ternura que Jesus se dirigia a Deus) e Mammôn, a deusa do
dinheiro. Mammôn tem o radical mn, que significa confiar. A revelação de Jesus
é que Deus é bom, Pai e Mãe de todos, e realmente não é possível confiar,
entregar-se confiadamente a Deus e ao mesmo tempo confiar, entregar-se
confiadamente a Dinheiro como salvador.
Jesus também disse: “Eu sou Senhor e
Mestre”, mas “vim para servir, não para ser servido”; “quem quiser ser o
primeiro seja servidor”. Deus é omnipotente? Sim, tem todo o poder, mas não
enquanto dominação mas Força infinita de criar.
O latim pode ser iluminante. Mestre
tem na sua origem magister, com base em magis, que significa mais, de tal modo
que o mestre é o que está acima, o maior, em contraposição com ministro, que
vem de minister, com base em minus, menos, e que é o servente, o que serve.
(Quantos ministros — também os ministros da Igreja — se lembram que devem ser
os que servem, os serventes?). E isso nada tem que ver com ser incompetente. O
exemplo é Jesus: ele é o verdadeiro Mestre e Senhor, mas é servidor. Assim,
todos devem levar o mais longe possível os seus dons, não para dominar, mas
para a maior realização de todos.”
Anselmo
Borges, (Padre e
professor de Filosofia), Artigo publicado no DN
| 15 de Outubro de 2022
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