Outubro de 96, S.
Pedro do Estoril
por Eugénio Lisboa
«Aproximava-se a abertura das aulas e, em Outubro, teria que me dividir entre Lisboa (UNESCO) e Aveiro. Ia pensando no que iria dizer aos alunos e alunas que ali iria encontrar. O Pedro Calheiros, cauteloso e amigo, fora-me avisando que não alimentasse expectativas demasiado altas, quanto ao nível de conhecimentos dos alunos. As coisas já não eram como no meu tempo de estudante. Havia muita ignorância de coisas básicas, chegava a ser aflitivo, dizia ele. Além do mais, a maioria dos alunos nem de redigir se mostrava capaz. Confesso que duvidei… O Pedro estava a ser alarmista, coisa muito portuguesa.
(...)Chegou, por fim, o temido, mas também ansiado primeiro dia. Houve uma reunião preliminar em que se distribuíram os cerca de vinte mestrandos pelos docentes que havia. Fiquei com a parte de leão. Ficaria ainda com mais, se não tivesse acendido a luz vermelha.
Iríamos começar por dar um curso para os mestrandos, no qual eu ministraria Hermenêutica e Paradigmas da Crítica do Discurso Literário. Dava, ainda, para os finalistas da licenciatura, um Seminário de Literatura Portuguesa e, além disto, um curso semestral de Teoria da Literatura. Ficava bem abastecido, porque iria também, a pedido, fazer uma Introdução aos Estudos Africanos (de língua portuguesa). Em suma, uma semana de dois ou três dias completamente cheia…e a tensão arterial a subir!
Para cada curso, reservei o primeiro dia, para conversar, individualmente, com os alunos. Queria sondá-los: verificar o que tinham lido, o que tinham preferido, o que gostavam de fazer, se iam ao cinema (e o que, neste sector, preferiam), que disciplinas tinham, quais lhes tinham prendido mais a atenção e o gosto e porquê. Isto e o mais que, no decorrer da conversa, me ocorresse. Houve, como sempre, alunos e alunas interessantes e até de grande vivacidade, mas o nível geral não era muito encorajante. Uma aluna, por exemplo, disse-me que lera uma peça de Shakespeare, mas não se lembrava de qual… Outra, que “adorava” cinema, mas que o seu filme preferido fora o Brave Heart, com o Mel Gibson. Cinema clássico, nunca vira. E até houve quem se não lembrasse de um único livro que tivesse lido. Talvez o Pedro Calheiros, afinal, tivesse alguma razão… Mas, como dizia o outro, que fazer? Comecei a fazer o melhor que sabia e podia e fi-lo, em qualquer dos casos, com empenho. Dei-me sempre bem com os alunos e nunca tive razão de queixa do modo como se comportavam. Perceberam depressa que eu não era um dragão, mas que também não admitiria tropelias. Eram, de qualquer modo, gente educada, cuja atenção procurei, com dedicação, captar.
Eu não tinha dificuldade em falar com fluência e procurava sempre contar algumas histórias que, por um lado, melhor ilustrassem o conceito abstracto, por outro, captassem , com algum vigor, a atenção dos alunos. Procurava, em suma, que as aulas fossem recheadas de “matéria”, envolvida, se possível, nalguma sedução. E gostava de provocar. Usava, muitas vezes, do humor, que servia para desvalorizar hipóteses de trabalho que temia se tornassem dogmas de serviço, com toda a sua corte de oficiais e sargentos, rigidamente vigilantes e de chicote punitivo na mão, para meterem na ordem os “infractores”. Os estudos literários – e não só em Portugal – tendem a ser um percurso em que se transita de um dogma em vigor para outro dogma em vigor, quando, em ciência, se vai, mais humildemente, de uma hipótese de trabalho para outra hipótese de trabalho, aparentemente – e provisoriamente – mais satisfatória. Quantos “ismos” literários se têm instalado, entre nós, como verdadeiros Terrores robespierrianos, com guilhotina montada e execuções na praça pública. Vendendo-se isso como “ciência”… Alguns dos detentores destas “verdades absolutas” mas, no fim, desapontadoramente efémeras, usam de um estilo violentamente assertivo, punitivo (para os "não aderentes") e histericamente decibélico, como costuma ser o estilo manipulado pelos que assentam fundações, mais na fé, do que numa razão cautelosa e vigilante. O dogma da “linguagem” intransitiva (como um fim em si) esteve na origem de alguns delírios sensacionais. Martins Garcia, por exemplo, num semanário lisboeta, Vida Mundial, guilhotinava, com furor regular, os não iniciados na mística da “linguagem” suspensa no vazio. Quem dissesse “faca” em vez de “revólver” estava frito: tinha, desastradamente, perdido o combóio da “modernidade”, mesmo que, para o caso, o texto visado, falasse de uma geografia e de um tempo em que as lutas se faziam a soco e à facada e onde o revólver ainda não penetrara… Cada novo “iluminado”, que tomava, de assalto, o poder, mantinha-o pela força de uma fé violenta e obtusa, gritada numa linguagem de arrogante ameaça. Acreditas e aderes ou morres! Umas besuntadelas humildes de introdução à ciência talvez tivessem ajudado a torná-los mais prudentes e menos turbulentos. Mas, de momento, aquela era a “ciência” de que eram capazes (como se diz, em geometria, que um arco de circunferência é “capaz” de um ângulo…)
Deste terror vigente, foi oficiante máximo Eduardo Prado Coelho, que mudava vigorosamente de dogma sanguinolentamente assertivo para dogma impiedosamente mortífero, com a leviandade contente e saudável de quem muda sem sofrer e sem ter que se explicar. Havia sempre um “livro” ou um texto que lhe dava (ou parecia que dava) cobertura à nova fé, que brandia com a força cega e deslumbrada dos neo-convertidos. Contradizer-se era o seu reino, mudar de certezas absolutas o seu caldo de cultura. Foi contra tudo isto que procurei, com humor e sem azedume – e procurando nunca “fulanizar” os meus argumentos – vacinar os meus alunos a alunas. Mostrar, divertindo, os pés de barro de tais monumentos erigidos à “coragem de afirmar”.
A minha luta, note-se bem, não era contra o “mudar”, era contra o mudar de “certezas absolutas” para outras igualmente absolutas. O intelectualmente saudável e fecundo era substituir as “certezas” por simples “hipóteses de trabalho”. As certezas aquecidas são sempre indutoras de fanatismo, de assertividade mortífera e auto-destruidora. O Islão está aí a demonstrá-lo, todos os dias. A alegria um pouco provinciana com que EPC brandia cada novo “livro” (que tinha, aliás, lido pela rama) e cada novo “dogma” incomodava-me, devido à minha formação em grande parte científica. Tudo aquilo me parecia frágil, mundano, pifiamente contente, paroquial. A sementeira de “razão” e sólido bom senso feita com teimosia, no decurso de décadas, por António Sérgio, afinal frutificara muito pouco. Os velhos vícios de mentalidade ficaram quase intactos. Muitos dos seus discípulos entregaram-se, depois, pensando que marchavam em frente, mas sem espírito crítico, às “verdades” aquecidas dos marxismos em segunda mão e de conotações diversas, que tudo “explicavam” e davam para benzer mesmo o mais infame e o mais inconcebível. E, de aqui, passaram, alegre e irreflectidamente, para outros “ismos”, incapazes de, com aqueles, minimamente se reconciliarem. Sérgio pregara o sentido crítico sempre desperto, a destemida autonomia do pensar, o horror ao dogma em vigor, mas, aparentemente, o DNA da maioria dos intelectuais lusíadas não se deixara impregnar, ficando incapaz de se afeiçoar a esse terreno álgido e altivo, onde respira a independência do espírito crítico – aliás, de pouco apreço colectivo. Ir na onda, estar com o que, de momento, fazia mais ruido e colhia o favor dos gurus de serviço – dava mais juros. De Paris, sopravam os ventos que traziam até nós os vários evangelhos hermenêuticos e semióticos, que os correctores lusíadas vendiam na bolsa de valores cá do sítio.
(...) Sérgio morrera em 1969, devorado de depressão e de desapontamento, quase totalmente descrente na virilização da autonomia pensante do “clerc” lusitano. O viver de aparências e das últimas importações dos sítios culturais emissores, em cada momento, dos “valores” apadrinháveis, continuava a ser a grande tentação dos intelectuais portugueses. Analisar, criticar, sugerir uma ideia em contra-corrente era considerado pouco recomendável – porque perigoso. O “chico-espertismo” faz fortuna não apenas nos circuitos do negócio. “Ser esperto” abre imensas fechaduras, nos mais variados territórios. O meio universitário também acolhe o chico-esperto se ele souber vestir as roupagens convenientes e se dispuser a “jouer le jeu”, como dizem os franceses.
Contra tudo isto, falei desbocadamente, porque me parecia um acto de saneamento necessário. Ter frio nos olhos nunca foi meu hábito. Nunca receei tornar-me impopular ou pouco “vendável”. Nem sequer era coragem: era apenas, penso eu, um bocadinho de sentido estético bem apurado: o espectáculo mais generalizado de “seguidismo” acrítico dado pelo nosso meio intelectual afigurava-se-me de elegância mais do que duvidosa. A escala de valores que se tentava impor quase me parecia surrealista. A supressão, pelo silêncio ou pelo ataque soez, a grandes figuras da nossa cultura – recebida com cobardia pelos que não queriam confrontar o “establishment – era-me insuportável. Quando ignorava os tabus e dava o meu melhor a estudar os “pestiferados”, aparecia sempre quem, em surdina, me aplaudia – mas só em surdina. Cá fora – não convinha exporem-se. O terror – mesmo o terror literário – foi sempre uma arma eficaz. A ele se vergaram algumas eminentes figuras, mudando, para isso, mais do que uma casaca por ano – porque assim mandavam os ventos dominantes. A coragem das suas convicções não era, neles, a componente mais em evidência – apesar de toda a cultura, inteligência e finura, que pudessem ter e efectivamente tinham.
O mais intrigante e, em mim, muito causador de desassossego, era o ar contente e mesmo triunfal com que os nossos “clercs” se instalavam em cada novo dogma importado de Paris. Era um autêntico acto de fé. Aquilo passava rapidamente de “tentativa” a catecismo. Era preciso aprendê-lo de A a Z e de Z a A, sem pestanejar, como se fosse a tabuada, no tempo em que ela se decorava. Não havia margem para dúvidas ou questionamentos. “Quando possuímos a fé, dispensamos a verdade”, observava Nietzsche. A fé expulsa a dúvida, a qual – só ela – faz avançar o conhecimento e garante a vida: “A vida é dúvida e a fé sem dúvida não passa de morte”, dizia Unamuno, esse grande inquieto que bem sabia do que falava. Instalados na fé e no dogma, o motor de arranque dos convertidos deixava de funcionar: “A coisa importante”, notava Einstein, “é não parar de questionar.” Derrubar uma hipótese de trabalho, substituindo-a por outra melhor e provisoriamente mais válida (até que chegue outra ainda melhor) – é o protocolo fértil – não morto – do verdadeiro descobridor. Mudar de hipótese, digo eu, o que não é o mesmo que mudar de certeza. É a dúvida, a capacidade de questionar que promove o avanço do conhecimento. A certeza é mais cómoda e gratificante, mas é, também, produtora de anquilose – mesmo quando se muda de certeza. Claro que a dúvida não é “agradável”: viver em estado de dúvida permanente não aquece a alma, como a aquece a certeza (a fé). Voltaire já o tinha observado, com a sua inteligência de “gamin” irrequieto: “A dúvida”, dizia ele, “não é um estado mental agradável, mas a certeza é um estado ridículo”. E o grande cientista inglês, Thomas Henry Huxley, avisava: “A ciência comete um suicídio quando adopta um credo.”
(...)Gostava de ser professor. Gostava de ensinar. E causava-me não pequeno espanto a declaração, então muito em voga, de universitários portugueses, em tom de snobeira provinciana: “Não tenho pachorra nem tempo para ensinar. Quereria dedicar o meu tempo todo à investigação.” Como se o ensino não pudesse estimular – e muito! – a própria investigação! E como se esta não fosse partilha e diálogo! Naquela reveladora declaração de interesse, havia, escondida, uma quase vergonha de se pertencer à nobre profissão de ensinar. Ofereço-lhes aqui, para se purgarem dessa vergonha, estas palavras de William G. Carr: “I beg of you to stop apologizing for being a member of the most important…profession of the world.”»
Eugénio Lisboa, in Acta Est Fabula , Memórias V - Regresso a Portugal (1995-2015) pp.108-109,111-117.
por Eugénio Lisboa
«Aproximava-se a abertura das aulas e, em Outubro, teria que me dividir entre Lisboa (UNESCO) e Aveiro. Ia pensando no que iria dizer aos alunos e alunas que ali iria encontrar. O Pedro Calheiros, cauteloso e amigo, fora-me avisando que não alimentasse expectativas demasiado altas, quanto ao nível de conhecimentos dos alunos. As coisas já não eram como no meu tempo de estudante. Havia muita ignorância de coisas básicas, chegava a ser aflitivo, dizia ele. Além do mais, a maioria dos alunos nem de redigir se mostrava capaz. Confesso que duvidei… O Pedro estava a ser alarmista, coisa muito portuguesa.
(...)Chegou, por fim, o temido, mas também ansiado primeiro dia. Houve uma reunião preliminar em que se distribuíram os cerca de vinte mestrandos pelos docentes que havia. Fiquei com a parte de leão. Ficaria ainda com mais, se não tivesse acendido a luz vermelha.
Iríamos começar por dar um curso para os mestrandos, no qual eu ministraria Hermenêutica e Paradigmas da Crítica do Discurso Literário. Dava, ainda, para os finalistas da licenciatura, um Seminário de Literatura Portuguesa e, além disto, um curso semestral de Teoria da Literatura. Ficava bem abastecido, porque iria também, a pedido, fazer uma Introdução aos Estudos Africanos (de língua portuguesa). Em suma, uma semana de dois ou três dias completamente cheia…e a tensão arterial a subir!
Para cada curso, reservei o primeiro dia, para conversar, individualmente, com os alunos. Queria sondá-los: verificar o que tinham lido, o que tinham preferido, o que gostavam de fazer, se iam ao cinema (e o que, neste sector, preferiam), que disciplinas tinham, quais lhes tinham prendido mais a atenção e o gosto e porquê. Isto e o mais que, no decorrer da conversa, me ocorresse. Houve, como sempre, alunos e alunas interessantes e até de grande vivacidade, mas o nível geral não era muito encorajante. Uma aluna, por exemplo, disse-me que lera uma peça de Shakespeare, mas não se lembrava de qual… Outra, que “adorava” cinema, mas que o seu filme preferido fora o Brave Heart, com o Mel Gibson. Cinema clássico, nunca vira. E até houve quem se não lembrasse de um único livro que tivesse lido. Talvez o Pedro Calheiros, afinal, tivesse alguma razão… Mas, como dizia o outro, que fazer? Comecei a fazer o melhor que sabia e podia e fi-lo, em qualquer dos casos, com empenho. Dei-me sempre bem com os alunos e nunca tive razão de queixa do modo como se comportavam. Perceberam depressa que eu não era um dragão, mas que também não admitiria tropelias. Eram, de qualquer modo, gente educada, cuja atenção procurei, com dedicação, captar.
Eu não tinha dificuldade em falar com fluência e procurava sempre contar algumas histórias que, por um lado, melhor ilustrassem o conceito abstracto, por outro, captassem , com algum vigor, a atenção dos alunos. Procurava, em suma, que as aulas fossem recheadas de “matéria”, envolvida, se possível, nalguma sedução. E gostava de provocar. Usava, muitas vezes, do humor, que servia para desvalorizar hipóteses de trabalho que temia se tornassem dogmas de serviço, com toda a sua corte de oficiais e sargentos, rigidamente vigilantes e de chicote punitivo na mão, para meterem na ordem os “infractores”. Os estudos literários – e não só em Portugal – tendem a ser um percurso em que se transita de um dogma em vigor para outro dogma em vigor, quando, em ciência, se vai, mais humildemente, de uma hipótese de trabalho para outra hipótese de trabalho, aparentemente – e provisoriamente – mais satisfatória. Quantos “ismos” literários se têm instalado, entre nós, como verdadeiros Terrores robespierrianos, com guilhotina montada e execuções na praça pública. Vendendo-se isso como “ciência”… Alguns dos detentores destas “verdades absolutas” mas, no fim, desapontadoramente efémeras, usam de um estilo violentamente assertivo, punitivo (para os "não aderentes") e histericamente decibélico, como costuma ser o estilo manipulado pelos que assentam fundações, mais na fé, do que numa razão cautelosa e vigilante. O dogma da “linguagem” intransitiva (como um fim em si) esteve na origem de alguns delírios sensacionais. Martins Garcia, por exemplo, num semanário lisboeta, Vida Mundial, guilhotinava, com furor regular, os não iniciados na mística da “linguagem” suspensa no vazio. Quem dissesse “faca” em vez de “revólver” estava frito: tinha, desastradamente, perdido o combóio da “modernidade”, mesmo que, para o caso, o texto visado, falasse de uma geografia e de um tempo em que as lutas se faziam a soco e à facada e onde o revólver ainda não penetrara… Cada novo “iluminado”, que tomava, de assalto, o poder, mantinha-o pela força de uma fé violenta e obtusa, gritada numa linguagem de arrogante ameaça. Acreditas e aderes ou morres! Umas besuntadelas humildes de introdução à ciência talvez tivessem ajudado a torná-los mais prudentes e menos turbulentos. Mas, de momento, aquela era a “ciência” de que eram capazes (como se diz, em geometria, que um arco de circunferência é “capaz” de um ângulo…)
Deste terror vigente, foi oficiante máximo Eduardo Prado Coelho, que mudava vigorosamente de dogma sanguinolentamente assertivo para dogma impiedosamente mortífero, com a leviandade contente e saudável de quem muda sem sofrer e sem ter que se explicar. Havia sempre um “livro” ou um texto que lhe dava (ou parecia que dava) cobertura à nova fé, que brandia com a força cega e deslumbrada dos neo-convertidos. Contradizer-se era o seu reino, mudar de certezas absolutas o seu caldo de cultura. Foi contra tudo isto que procurei, com humor e sem azedume – e procurando nunca “fulanizar” os meus argumentos – vacinar os meus alunos a alunas. Mostrar, divertindo, os pés de barro de tais monumentos erigidos à “coragem de afirmar”.
A minha luta, note-se bem, não era contra o “mudar”, era contra o mudar de “certezas absolutas” para outras igualmente absolutas. O intelectualmente saudável e fecundo era substituir as “certezas” por simples “hipóteses de trabalho”. As certezas aquecidas são sempre indutoras de fanatismo, de assertividade mortífera e auto-destruidora. O Islão está aí a demonstrá-lo, todos os dias. A alegria um pouco provinciana com que EPC brandia cada novo “livro” (que tinha, aliás, lido pela rama) e cada novo “dogma” incomodava-me, devido à minha formação em grande parte científica. Tudo aquilo me parecia frágil, mundano, pifiamente contente, paroquial. A sementeira de “razão” e sólido bom senso feita com teimosia, no decurso de décadas, por António Sérgio, afinal frutificara muito pouco. Os velhos vícios de mentalidade ficaram quase intactos. Muitos dos seus discípulos entregaram-se, depois, pensando que marchavam em frente, mas sem espírito crítico, às “verdades” aquecidas dos marxismos em segunda mão e de conotações diversas, que tudo “explicavam” e davam para benzer mesmo o mais infame e o mais inconcebível. E, de aqui, passaram, alegre e irreflectidamente, para outros “ismos”, incapazes de, com aqueles, minimamente se reconciliarem. Sérgio pregara o sentido crítico sempre desperto, a destemida autonomia do pensar, o horror ao dogma em vigor, mas, aparentemente, o DNA da maioria dos intelectuais lusíadas não se deixara impregnar, ficando incapaz de se afeiçoar a esse terreno álgido e altivo, onde respira a independência do espírito crítico – aliás, de pouco apreço colectivo. Ir na onda, estar com o que, de momento, fazia mais ruido e colhia o favor dos gurus de serviço – dava mais juros. De Paris, sopravam os ventos que traziam até nós os vários evangelhos hermenêuticos e semióticos, que os correctores lusíadas vendiam na bolsa de valores cá do sítio.
(...) Sérgio morrera em 1969, devorado de depressão e de desapontamento, quase totalmente descrente na virilização da autonomia pensante do “clerc” lusitano. O viver de aparências e das últimas importações dos sítios culturais emissores, em cada momento, dos “valores” apadrinháveis, continuava a ser a grande tentação dos intelectuais portugueses. Analisar, criticar, sugerir uma ideia em contra-corrente era considerado pouco recomendável – porque perigoso. O “chico-espertismo” faz fortuna não apenas nos circuitos do negócio. “Ser esperto” abre imensas fechaduras, nos mais variados territórios. O meio universitário também acolhe o chico-esperto se ele souber vestir as roupagens convenientes e se dispuser a “jouer le jeu”, como dizem os franceses.
Contra tudo isto, falei desbocadamente, porque me parecia um acto de saneamento necessário. Ter frio nos olhos nunca foi meu hábito. Nunca receei tornar-me impopular ou pouco “vendável”. Nem sequer era coragem: era apenas, penso eu, um bocadinho de sentido estético bem apurado: o espectáculo mais generalizado de “seguidismo” acrítico dado pelo nosso meio intelectual afigurava-se-me de elegância mais do que duvidosa. A escala de valores que se tentava impor quase me parecia surrealista. A supressão, pelo silêncio ou pelo ataque soez, a grandes figuras da nossa cultura – recebida com cobardia pelos que não queriam confrontar o “establishment – era-me insuportável. Quando ignorava os tabus e dava o meu melhor a estudar os “pestiferados”, aparecia sempre quem, em surdina, me aplaudia – mas só em surdina. Cá fora – não convinha exporem-se. O terror – mesmo o terror literário – foi sempre uma arma eficaz. A ele se vergaram algumas eminentes figuras, mudando, para isso, mais do que uma casaca por ano – porque assim mandavam os ventos dominantes. A coragem das suas convicções não era, neles, a componente mais em evidência – apesar de toda a cultura, inteligência e finura, que pudessem ter e efectivamente tinham.
O mais intrigante e, em mim, muito causador de desassossego, era o ar contente e mesmo triunfal com que os nossos “clercs” se instalavam em cada novo dogma importado de Paris. Era um autêntico acto de fé. Aquilo passava rapidamente de “tentativa” a catecismo. Era preciso aprendê-lo de A a Z e de Z a A, sem pestanejar, como se fosse a tabuada, no tempo em que ela se decorava. Não havia margem para dúvidas ou questionamentos. “Quando possuímos a fé, dispensamos a verdade”, observava Nietzsche. A fé expulsa a dúvida, a qual – só ela – faz avançar o conhecimento e garante a vida: “A vida é dúvida e a fé sem dúvida não passa de morte”, dizia Unamuno, esse grande inquieto que bem sabia do que falava. Instalados na fé e no dogma, o motor de arranque dos convertidos deixava de funcionar: “A coisa importante”, notava Einstein, “é não parar de questionar.” Derrubar uma hipótese de trabalho, substituindo-a por outra melhor e provisoriamente mais válida (até que chegue outra ainda melhor) – é o protocolo fértil – não morto – do verdadeiro descobridor. Mudar de hipótese, digo eu, o que não é o mesmo que mudar de certeza. É a dúvida, a capacidade de questionar que promove o avanço do conhecimento. A certeza é mais cómoda e gratificante, mas é, também, produtora de anquilose – mesmo quando se muda de certeza. Claro que a dúvida não é “agradável”: viver em estado de dúvida permanente não aquece a alma, como a aquece a certeza (a fé). Voltaire já o tinha observado, com a sua inteligência de “gamin” irrequieto: “A dúvida”, dizia ele, “não é um estado mental agradável, mas a certeza é um estado ridículo”. E o grande cientista inglês, Thomas Henry Huxley, avisava: “A ciência comete um suicídio quando adopta um credo.”
(...)Gostava de ser professor. Gostava de ensinar. E causava-me não pequeno espanto a declaração, então muito em voga, de universitários portugueses, em tom de snobeira provinciana: “Não tenho pachorra nem tempo para ensinar. Quereria dedicar o meu tempo todo à investigação.” Como se o ensino não pudesse estimular – e muito! – a própria investigação! E como se esta não fosse partilha e diálogo! Naquela reveladora declaração de interesse, havia, escondida, uma quase vergonha de se pertencer à nobre profissão de ensinar. Ofereço-lhes aqui, para se purgarem dessa vergonha, estas palavras de William G. Carr: “I beg of you to stop apologizing for being a member of the most important…profession of the world.”»
Eugénio Lisboa, in Acta Est Fabula , Memórias V - Regresso a Portugal (1995-2015) pp.108-109,111-117.
Sem comentários:
Enviar um comentário