sexta-feira, 21 de outubro de 2022

A propósito da moderna literatura

Lev Tolstoi, o grande escritor russo, morreu na estação  Ferroviária de Astapovo, a 7 de Novembro de 1910. Manteve  um Diário de que extraímos a entrada de 29 de Setembro de 1910 . É curioso constatar como este extraordinário colosso das letras  observa a literatura moderna que vai surgindo. Visão que se repete com outros grandes nomes da literatura e que se arrasta , para nosso infortúnio, até aos nossos dias.

"29 de Setembro de 1910. Iásnaia Poliana.
1)  Que horrível veneno mental  é a literatura moderna, em especial para os jovens do povo. Primeiro, enchem a memória de palavreado obscuro, presunçoso, dos escritores que escrevem para os contemporâneos . A principal particularidade e nocividade desse palavreado é que todo ele consiste em alusões, em citações dos mais diversos escritores modernos e antigos.  Citam palavras de Platão, de Hegel , de Darwin, das quais os próprios escritores não têm  a mínima noção, e ao lado, frases de um qualquer Andréiev ou Astribáchev  de que não vale a pena ter qualquer noção; segundo , esse palavreado é nocivo porque , ao encher as cabeças , não deixa nelas espaço nem vagar para conhecer os escritores antigos que passaram a prova do tempo, não apenas dezenas , mas centenas e milhares de anos."
Lev Tolstoi, in " Os Últimos Escritos" , Relógio D'Água Editores, Setembro de 2018, p 296
 

Note-se o que George Steiner ,o grande intelectual, professor, ensaísta, escreveu sobre o mesmo tema, em 1966, várias décadas  mais tarde.
" Não estou a dizer que os escritores deveriam deixar de escrever. Isso seria pretensioso. Pergunto-me se não escreverão demasiado , se a massa de textos impressos, por entre os quais temos dificuldade  em abrir caminho , desorientados , não representa  por si só  uma subversão  do sentido. « Uma civilização de palavras  é uma civilização doentia.» É uma civilização  em que a inflação constante da moeda verbal desvalorizou  de tal modo o que antes era um acto de comunicação criadora , que o valor  e a inovação autênticos deixam de ser audíveis.  Todos os meses tem de ser produzida uma obra-prima e, como tal, a actividade editorial  concede à mediocridade  um esplendor espúrio  e passageiro. Os cientistas dizem-nos que a vaga de publicações especializadas  e monografias atinge proporções tais , que em breve será necessário tornar as bibliotecas satélites em órbita, acessíveis por meios electrónicos enquanto giram à volta da Terra. A proliferação da verborreia  na investigação humanística , as banalidades disfarçadas de erudição ou de reavaliação crítica ameaçam de obliteração  a obra de arte e a exigência imediata da descoberta pessoal, que é a base de toda a verdadeira crítica. Falamos também demais, com demasiada leviandade, e tornamos público o que é privado, transformamos em estereótipos de falsa  certeza  o aproximativo, pessoal e, por isso, vivo na região da sombra da palavra.  Vivemos uma cultura que é cada vez mais um turbilhão de palavreado oco, palavreado que se estende da teologia à política  e confere um ruído inaudito a problemas íntimos de cada um  ( o processo psicanalítico é a retórica superior da curiosidade indiscreta). Trata-se de um mundo que não terminará numa explosão nem num  grito, mas num título de primeira página, num lema publicitário, num romance obsceno tão palavrosamente  frondoso como um cedro do Líbano. Em que proporção deste fluxo quotidiano as palavras cedem à palavra? E onde encontraremos o silêncio necessário para que possamos aperceber-nos dessa metamorfose?"
George Steiner, in Linguagem e Silêncio, Ensaios sobre  a Literatura a Linguagem e o Inumano, Gradiva Publicações, S.A., pp.95,96
 

E last but not least, recordemos  Eugénio Lisboa, o nosso maior ensaísta e crítico literário da actualidade, nesta lúcida crónica  de 2022. 
A cobardia e o calculismo são o que mais ordenam
por Eugénio Lisboa
“O nosso milieu literário anda cheio de miasmas perigosos para a saúde mental. Em vez de uma sadia coragem, independência e destemida vontade de se dizer o que as coisas realmente são, assistimos a um conglomerado de acocorados, aconchegados no seu medo de ofender este ou aquele grupo de influência ou aquele provável júri de um prémio ou aquele gestor de uma tribuna crítica.
Em vez de um testemunho autêntico, oferece-se-nos, quase sempre, uma mixórdia destinada a agradar a gregos e troianos. Faz lembrar o que se dizia de um camelo ser o cavalo produzido por uma reunião de muitas opiniões. A nossa literatura, em vez de ser uma esbelta colecção de cavalos, é um conjunto de pesados camelos. Entre o receio de não agradarem a todas as tertúlias da república e o terror de não inovarem o suficiente para obterem a bênção dos gurus de serviço, os jovens candidatos a escritor já não sabem para que lado se virarem. A vida é uma canseira, como dizia a fogosa Lúcia Lepecki.
A maioria das vezes em que pego num romance português, apetece-me ir logo a correr à procura de uma boa ficção inglesa ou americana. Isto faz-me lembrar o conselho saudável que dava o grande Raymond Chandler aos escritores: “Se a história começa a esmorecer, faça aparecer um homem armado de pistola.” É disto que eu me queixo: no raio da ficção portuguesa nunca aparece o salvífico homem armado de pistola. Falta-lhe autenticidade, virilidade e um bom bocado de limpeza.
Falta-lhe, sobretudo, não ter vergonha de recorrer ao homem da pistola. Tem medo de nos “entreter”, como recomendava Henry James que era essencial fazer, por estar convencida de que é seu principal dever aborrecer-nos. Tem muito medo de nos contar uma história, porque os gurus privilegiam o romance sem história dentro. Isso levar-nos-ia a termos de desprezar obras como o Dom Quixote, A Cartuxa de Parma, a Guerra e Paz, a Ana Karenina, A Prima Bette, o David Copperfield, Middlemarch, As Aventuras de Huckleberry Finn e por aí fora, tudo obras recheadas de história, o que faz encolher de horror as vestais do romançolho moderno lusíada.
O genial Ortega y Gasset bem se esfalfou com o símile do colar de pérolas: o que tem valor nesse colar são as pérolas e não o fio, mas, sem o fio, não há colar. No romance, as personagens, as emoções, os conflitos entre personagens serão o mais importante, mas a história funciona como o fio do colar de pérolas: sem ela, não há romance. A história, ao contrário do que sustentam os snobs parolos, é fundamental, mesmo que seja débil, o que não é o caso, nas obras que citei.
Termino, pois, recomendando fervorosamente aos nossos escritores que sejam destemidos, isto é, que não tenham medo de contar uma história e que não receiem recorrer ao homem armado de pistola. Mandem bugiar os gurus lusitanos, cheios de macaquinhos na cabeça e pouca capacidade de pensar.”
Eugénio Lisboa, Crónica publicada no Jornal I, em 01. 07.2022

Sem comentários:

Enviar um comentário