PEDRA DE TOQUE
As séries
Por MARIO VARGAS LLOSA
22 JAN 2017 - 12:43 CET
"A televisão
finalmente encontrou um produto original e divertido do qual está tirando
excelente proveito: as séries. Elas existem há muito tempo no cinema, pois me
recordo de que, em minha longínqua infância cochabambina (na Bolívia), todos os
domingos, com meu amigo Mario Zapata, o filho do fotógrafo da cidade, depois da
missa na La Salle íamos ao cine Achá para ver os três episódios do filme em
série da vez – costumavam ter doze–, aventureira e tranquilizante, porque nela
os bons ganhavam sempre aos maus. Mas depois o cinema as esqueceu, e agora a
televisão as ressuscitou com sucesso.
São
geralmente muito bem feitas, com grande estardalhaço nos media, e mantêm a
continuidade, apesar de os roteiristas e directores mudarem de um capítulo para
outro e as histórias se alongarem ou encurtarem conforme o interesse que
despertem nos telespectadores. Costumam ser entretenimento puro, sem maiores
pretensões, com algumas excepções, como The Wire, fascinante exploração dos
guetos e bairros marginais de Baltimore em que, acreditem ou não, quase todos
os actores negros que tão bem pronunciam entredentes a gíria local... são
ingleses!, e Borgen, sobre as intrigas e dilemas políticos desse civilizado
país que é a Dinamarca. Mas talvez a diferença mais significativa entre as
séries que distraem milhões de telespectadores e as que eu via no Cine Achá é
que nas de agora invariavelmente os maus vencem os bons. Nelas, se alguém
comete a impertinência de compará-las com o mundo real, ocorrem coisas
disparatadas, absurdas, loucas. Mas isso nada importa, porque uma ficção, seja
nos livros, no palco ou numa tela, se estiver bem contada, é crível, quer
coincida ou destoe da vida que conhecemos através da experiência.
Algo a
admirar nas séries norte-americanas, além da qualidade técnica e da formidável
variedade de cenários e figurantes de que costumam dispor, é a liberdade com
que utilizam factos e personagens da história recente, geralmente
desnaturalizando-os, e a ferocidade com que, frequentemente, manipulam e distorcem
as instituições e autoridades para conseguir maiores efeitos na narrativa e
surpreender e envolver mais o seu público. House of Cards, por exemplo, uma das
melhores, descreve a irresistível ascensão no labirinto do poder
norte-americano de um casal de políticos inescrupulosos, cínicos e delituosos
que, deixando ao longo de suas peripécias todo tipo de vítimas inocentes,
incluindo algum assassinato, chegam nada menos que à Casa Branca com toda a
legalidade. A série é muito divertida, os actores são excelentes, e a moral da
história que fica se remoendo na memória do telespectador é que a política é
uma actividade desprezível e criminosa, na qual só triunfam os canalhas, e na
qual as pessoas decentes e idealistas são sempre esmagadas.
Não menos
negativa é a visão da realidade política norte-americana e internacional na
magnífica Homeland, cuja sexta temporada acaba de começar e que eu sigo com a
avidez com que seguia, quando jovem, as sagas de Alexandre Dumas. Aqui não é a
presidência dos Estados Unidos que está contaminada, mas nada menos que todas
as agências de inteligência, a começar pela celebérrima CIA, cuja direcção é
facilmente infiltrada por agentes russos ou jihadistas ou a mando de imbecis
aos quais qualquer inimigo faz de bobo ou corrompe, sem que os heróicos Carrie
Mathison – uma personagem psicopatológica que parece criada para o divã do doutor Freud –, Peter Quinn e Saul Berenson possam fazer nada para salvar o
país e o mundo livre de sua inevitável derrota ante as forças do mal.
As séries são
uma continuação directa das radio novelas e telenovelas e, sobretudo, dos
romances seriados do século XIX – os famosos folhetins –, que, a princípio na
França e na Inglaterra, mas depois em toda a Europa, os jornais publicavam
semanalmente, e nos quais incorreram alguns grandes escritores como Dickens,
Balzac e Dumas. Têm como denominador comum a agilidade, a efervescência da
narrativa, a indisfarçável vontade de fazer os leitores ou espectadores se
divertirem e nada mais, a falta de ambição intelectual ou estética e a
simplicidade elementar da estrutura. E, também, a inverosimilhança. Nelas tudo
pode acontecer, porque os seus autores e o seu público fizeram um pacto
claríssimo: acreditar que se trata de ficção, invenções divertidas que não têm
nada a ver com a realidade.
Isso é mesmo
verdade? Se esmiuçarmos com atenção o ano que acaba de terminar, no aspecto
fundamentalmente político essa verdade se parece muito com uma mentira. Porque
somente numa série televisiva se concebe que tenha ganhado as eleições presidenciais
um senhor como Donald Trump, que, sem que sua voz trema, diz que os mexicanos
que emigram para os Estados Unidos são “ladrões, estupradores e assassinos”,
que o Brexit é um exemplo que outros países europeus deveriam seguir, que
menospreza a OTAN tanto como à União Europeia e que admira Vladimir Putin por
sua energia e liderança. As façanhas do ex-agente da KGB na Alemanha Oriental,
agora no comando da Rússia, não têm por acaso algo das proezas terríveis e
inauditas desses vilões das séries? Desde que subiu ao poder, engoliu parte da
Ucrânia, mantém os enclaves coloniais da Abkházia e da Ossétia do Sul na
Geórgia, ameaça invadir os países bálticos e, graças à sua intervenção armada
na Síria, tem agora uma influência e protagonismo de primeira ordem no Oriente
Médio.
Diferentemente
do que ocorria durante a URSS, os jornalistas e opositores incómodos não vão
para o Gulag, só morrem envenenados, em ataques a tiros ou espancamento nas
ruas por misteriosos delinquentes que depois desaparecem como que num passe de
mágica. Na Turquia, uma suposta tentativa de golpe de Estado deu margem à
repressão mais selvagem e ao retorno do obscurantismo religioso e o despotismo
que se acreditava ser coisa do passado. E a Venezuela, potencialmente um dos
países mais ricos da Terra, no ano de 2016 chegou, na frenética corrida para a
desintegração para a qual é conduzida pelo bando de demagogos e ineptos que a
governam, a uma espécie de apoteose da crise terminal na qual o “socialismo do
século XXI” a mergulhou. Será esse o destino da França se, como insinuam as
pesquisas, a senhora Marine Le Pen, admiradora sem disfarces de Trump e de
Putin, ganhar as próximas eleições presidenciais?
Ou seja,
depois de tudo, bem se diria que o melhor espelho das coisas horripilantes que
se sucedem ao nosso redor neste despontar do ano 2017 não está na grande
literatura nem nos filmes realmente criativos, mas nessas séries que, como os
“personagens transitáveis”, assim chamados por Flaubert, são meras pontes que
cruzamos e esquecemos no mesmo instante durante esses passeios que damos para
desanuviar a cabeça depois de muitas horas de trabalho.
Então, já que
as coisas andam deste jeito sinistro, vamos nos distrair vendo séries na tela
da TV, neste mundo surpreendente que, depois da extinção do comunismo, alguns ingénuos
acreditávamos que havia empreendido um caminho resoluto para a liberdade e a
prosperidade em vez de se transformar em nada mais, nada menos, do que um
reality show.”
Madrid, Janeiro
de 2017
Mario Vargas Llosa, em Artigo de Opinião publicado no
jornal “ EL País”
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