"A estratégia de Gandhi de acção contra a injustiça, até hoje não mereceu a receptividade devida no Ocidente, apesar de encontrarmos ecos em lutas como a de Luther King, por exemplo. No Brasil, o seu pensamento ainda é desconhecido nos meios académicos, embora popularmente seja apropriado no mais das vezes por um misticismo que obscurece o actor político e pensador arguto que ele foi. A experiência gandhiana com a Verdade não se limita nem se subordina ao moralismo imposto pelas religiões ou pela esfera dos negócios públicos, antes, dirá ele, “a verdadeira moralidade não consiste em seguir caminhos já trilhados, mas em encontrar o caminho verdadeiro para nós mesmo e segui-lo com intrepidez. Todo verdadeiro progresso é impossível sem tal perseguição incansável da verdade” . Nesse caminho contra a injustiça, Gandhi (que leu Thoreau, embora antes disso já agisse como ele indicava), diria “que obedecer a todas as leis, sejam boas ou más, é uma invenção recente.(...) Para os seres humanos que queiram levar uma bela vida moral, uma lei deve antes de tudo ser justa. A política moderna faz da lei um ídolo, simplesmente porque é a lei”. O caminho dessa desobediência e resistência será, entretanto, não o da revolução sangrenta , mas o da não-violência como uma “resistência activa” (como a denominava Gandhi, repelindo a expressão resistência passiva) : “para encontrar a Verdade e Deus, o caminho inevitável é o amor, isto é, a não-violência. Ora, creio firmemente que o fim e os meios são termos relacionáveis e não hesito em dizer que Deus é Amor.” (Gandhi, 1994). Deste modo o padrão tradicional de acção política seria rompido por Gandhi, na medida em que para ele os fins eram condicionados pelos meios na mesma medida em que considerava o futuro como contido no presente. Para isto renunciou a quaisquer métodos conspirativos contra o adversário. Isto transformou as suas batalhas contra o governo inglês em combates rituais nos quais as regras eram conhecidas de ambos os lados. Esta relação extraordinária entre meios e fins era correlata à ideia subjacente à satyagraha de que o processo e não os resultados era o mais importante. A experiência da verdade implica na renúncia aos frutos da acção e focaliza a sua atenção nos princípios éticos do agir político. Não há planos rigorosos a seguir, nem teologias e finalismos, mas fundamentalmente o momento presente.
“Satyagraha, literalmente, significa agarrar-nos à verdade, isto é, significa que a verdade é força. A verdade é alma e espírito. Satyagraha é, portanto, força da alma. Exclui o uso da violência , porque o homem não tem a capacidade de conhecer a verdade absoluta e, por isso, não pode tomar a liberdade de punir. A desobediência civil que é um aspecto da satyagraha, é uma violação civil, isto é uma violação não violenta das leis imorais do Estado. Outro aspecto da Satyagraha é a não cooperação, a recusa de colaboração com o Estado quando, na opinião do colaborador, ele se torna corrupto. Por sua própria natureza, a não cooperação é acessível até mesmo àqueles que são de mentalidade infantil, e pode ser praticada pelas massas”(Young Índia, 23.03.1931 in Woodcock, 1993) ).
Não-violência e Verdade tornam-se, deste modo, instrumentos específicos na construção de uma cultura de paz, importantes na estratégia de luta política (e cabe lembrar o grande estratega que foi Gandhi). A não-violência é um combate espiritual (e nesse sentido indissociada da Verdade) e político cujas armas são o Contacto com o adversário, a Não-Cooperação e a Desobediência Civil. Mesmo distanciando-se muito da concepção tradicional de política e pertencendo a tradições filosóficas distintas estes pensadores, embora com diferenças marcantes, une-os uma concepção do espaço público, não como esfera autónoma, mas como campo marcado pela eticidade e neste sentido é que irão elaborar directa ou transversalmente reflexões sobre uma cultura de paz, entendida como uma utopia, como um processo a ser construído. Esse eixo é que nos permite estabelecer pontes entre tradições filosóficas e religiosas distintas. Especialmente para Gandhi, Buber, Levinas, Ricoeur e Mounier, a relação humana, em suas dimensões privada e política, antes de ser essencialmente violenta é, na verdade, uma travessia em direcção ao Outro, ocorrendo no sentido de se olhar para ele como meu igual, aquele que, sendo ou não ele meu adversário, compartilha comigo uma raiz fundamental: a humanidade e pelo qual tenho responsabilidade. Retomá-los faz-se necessário a fim de se analisar sem preconceitos as possibilidades de construção de outros valores alternativos aos apresentados pela violência, isso num momento no qual no mundo moderno se aprofundam ainda mais a indiferença em relação ao Outro exposta na apologia ao mercado, na fetichização da globalização, na política espectacularizada, nas massas miseráveis jogadas nos braços da barbárie de maneira subtil, porém , não menos cruel do que Auschwitz . A construção de símbolos, valores e práticas em torno da paz é essencial para a sobrevivência da humanidade, não é algo para agora, mas semelhante à proposta de Hans Jonas, uma ética para o futuro.
Num mundo no qual as grandes narrativas fundadoras do comportamento humano foram eliminadas, onde o niilismo se faz acompanhar de relações pautadas na razão instrumental, a reflexão sobre não-violência em suas relações com a política é de importância máxima. O desafio é como podemos tecer relações no espaço público que ultrapassem o vazio ético no qual vivemos, para utilizar a expressão de Hans Jonas (1). Vazio esse que se apresenta de maneira mais contundente com a crise na figura do Estado e a deslegitimação da política mesma enquanto possibilidade de construção do bem colectivo, o que conduz à apatia entre os cidadãos e a sua substituição pela figura do consumidor. O fenómeno é observado em todo o mundo mas em especial assume dimensões singulares na América Latina. Como alternativa a isso os mecanismos de acção violenta nos processos sociais e políticos se tornaram lugar comum, banalizaram-se, passando mesmo a ser legitimados.
O que importa destacar é que no debate sobre a cultura de paz é possível, repetimos, o estabelecimento de nexos entre tradições filosóficas distintas mas que têm um eixo em comum: o deslocamento em direcção ao Outro e a percepção deste como aquele pelo qual se tem responsabilidade." Kátia Mendonça in "Em torno do conceito de cultura de paz"
(1) Vide Ricoeur, 1994.
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