" Pode viver-se num só dia o horror do inferno, há mais do que tempo."
( Wittgenstein)
Eu vivi-o em meia hora.
E A. , a minha pobre mulher?
Estávamos na sala de espera de um chamado " Instituto de Ressonância Magnética". Era 1 de Agosto, fazia um calor pavoroso. Esperávamos há horas, e, neste sítio especial, onde os maus presságios eram, por assim dizer, tangíveis no ar espesso, esforçava-me, corpo e e alma, por criar e manter um quotidiano, uma qualquer banalidade apaziguadora.
Depois de terem chamado para o scanner, o veredicto não demorou mais que dez minutos.
Numa sala afastada, inclinado sobre uma espécie de folha de papel, um jovem médico loiro, de óculos, comunicou-me coisas terríveis, rápido, num tom objectivo, irrevogável.
Arrastei-me até casa, a fim de reunir quanto um ser humano precisa para a sua última viagem: uma camisa de noite, uma pasta de dentes, chinelos...
Nestas semanas, escrevo sem parar, notas sobre factos entre os quais vivo, e estas notas em nada se assemelham aos factos entre os quais vivo.
Nunca poderei saber como vou viver este horror, a agonia de A., como - no fim de contas - nem sequer posso saber nada essencial sobre mim mesmo. O meu presente é, de momento, um tempo consagrado às recordações: no futuro, hei-de julgar o meu presente actual, e, portanto, uma insidiosa falsificação infiltra-se como um veneno manhoso em todos os meus pensamentos , em todas as minhas acções. O que tenho, ainda assim, que registar : a traição que o ser vivo comete em todos os instantes , a humilhação bem conhecida, e invencível, da sobrevivência. Cedo ou tarde, encontramo-nos na situação em que se luta por uma sobrevivência que o caos do moribundo ameaça engolir. Primeiramente, toma-se conhecimento da doença mortal de um próximo; em seguida, aceita-se a ideia ; mais tarde, resignamo-nos, e entrega-se nas mãos dos especialistas. Num certo sentido, tornamo-nos assassinos e poucos poderão evitar este destino, salvo, talvez os solitários, as pessoas sós. Mas também elas tiveram, talvez, um pai ou uma mãe que lhes falavam do fundo do seu balde de lixo. Tenho ainda de anotar que as situações que dão origem a tais práticas e, decorrentes destas práticas, a tais ideias se devem ao modo de vida moderno. A morte - mais precisamente, o morrer - é um problema já antigo, mas era, digamos, um problema natural. As situações modernas rimam sempre um pouco com Auschwitz; Auschwitz resulta sempre um pouco das situações modernas.
(...) O nosso amor era como uma criança surda-muda que corre, rosto risonho e braços estendidos, mas rosto que se torce lentamente num soluço, porque ninguém a compreende, e porque não desencanta uma finalidade para a sua corrida. Apercebo-me, e esta certeza quase me dá vertigens, de que, num só instante, o passado pode , efectivamente, tornar-se o que lhe chamam: passado, receptáculo de velhas coisas, impressões, vozes e imagens que abandonaram por completo as fontes vivas da vida que lhes deu o ser e as manteve intactas durante um tempo. A minha história soltou-se de mim: de súbito, perco o equilíbrio, como alguém que se sente perdido, e, entre o passado e o futuro, desliza para fora do tempo. Mais tarde, levantar-me-ei deste desabamento, e obedecerei a esta chamada insistente, a esta voz, que, para lá do nevoeiro que me rodeia agora, me convida a viver de novo. Mas, neste momento, nada sabendo, nem compreendendo, estou como que suspenso entre a vida e a morte, corpo inclinado para a frente, para a morte, a cabeça volta-se ainda para a vida, o pé que se ergue num passo indeciso. Para se pôr onde? É indiferente, porque quem vai dar um passo já não serei eu, mas um outro..." Imre Kertész, in Um Outro, Crónica de uma Metamorfose, Editorial Presença, 2009 pp 94,95
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