Daniel
Serrão, Médico
Patologista , Professor e autor de
várias obras, homem culto e dinâmico que
representou Portugal em diversos organismos internacionais, morreu ontem, 8 de
Janeiro, aos 88 anos. Foi meu professor e ilustre conversador de alguns
momentos notáveis que guardarei para sempre. Homem afável, simples e de fácil acesso
encantava uma plateia diversa pela profundidade e argúcia das suas reflexões ,
pelo seu humanismo sentido e pela força contagiante com que se entregava às
suas convicções. Estabeleceu, ao longo da sua vida, uma profunda dedicação
à Ética Médica e à Bioética. Foi, - e será- uma das maiores figuras da Bioética em
Portugal
Publicámos em Abril de 2011, um
excerto de uma conferência que Daniel Serrão proferiu, em 1988, num Encontro de Psicanálise
e Cultura. Em jeito de sentida homenagem
, republicamos esse excerto que continua a ser um texto rico e actual.
Obrigada, Professor.
Elogio
de um vazio virtual e virtuoso
(Conferência)
“Tenho à minha frente uma folha de
papel, branca, vazia.
Será insuportável o vazio desta folha?
Será que não conseguirei escrever nela
nada que interesse aos participantes neste encontro de Psicanálise e
Cultura?(...)Que grande desafio, minhas Senhoras e Senhores, o que fiz a mim
próprio ao aceitar intervir e ao assumir, contra a corrente, não a angústia do
vazio mas o elogio de um vazio que pode ser apenas virtual e poderá tornar-se
virtuoso.
Olho a folha de papel, branca e vazia,
e vejo nela o espaço onde vou projectar-me, onde vou colocar, com ordem e
método se possível, o que tenho para vos comunicar.
Sem nenhuma angústia. Com
tranquilidade e optimismo.
Começo com uma citação de Bernardo
Soares e do seu "Livro do Desassossego" que é, todo ele, uma análise
subtil mas corrosiva da percepção individual do vazio.
"Sim, é o poente..."
"Nesta hora, em que sinto até transbordar, quisera ter a malícia inteira
de dizer, o capricho livre de um estilo por destino. Mas não, só o céu alto é
tudo, remoto, abolindo-se, e a emoção que tenho, e que é tantas, juntas e
confusas, não é mais que o reflexo desse céu nulo num lago em mim - lago
recluso entre rochedos hirtos, calado, olhar de morto, em que a altura se
contempla esquecida.
Tantas vezes, tantas, como agora, me
tem pesado sentir que sinto sentir como angústia só por ser sentir, a
inquietação de estar aqui, a saudade de outra coisa que se não conheceu, o
poente de todas as emoções, amareleceu-me esbatido para tristeza cinzenta na
minha consciência externa de mim.
Ah, quem me salvará de existir? Não é
a morte que quero, nem a vida: é aquela outra cousa que brilha no fundo da
ânsia como um diamante possível numa cova a que se não pode descer. É todo o
peso e toda a mágoa deste universo real e impossível, deste céu estandarte de
um exército incógnito, destes tons que vão empalidecendo pelo ar fictício, de
onde o crescente imaginário da Lua emerge numa brancura eléctrica parada,
recortado a longínquo e a insensível.
É toda a falta de um Deus Verdadeiro
que é o cadáver vácuo do céu alto e da alma fechada. Cárcere infinito - porque
és infinito não se pode fugir de ti”. Fim de citação.
A inteligência analítica de Pessoa -
uma inteligência judaica que vai até ao mais fundo de si própria, sejam quais
forem as consequências, numa volúpia insaciável de descobrir a verdade -
desenha, neste texto, os contornos nítidos do vazio possível numa existência
humana.
É porque o existir é descoberto na
"consciência externa de mim" - le soi-même comme un autre, de Paul
Ricoeur - que o vazio não tem que ver nem com a vida nem com a morte; é outra
coisa que até brilha, que pode ser ou não um diamante, mas está no fundo de uma
cova à qual não se pode descer. Mas, não
poderá? - interrogo eu.
A apóstrofe final do texto de Bernardo
Soares é a caracterização deste vazio, do vazio tal como Pessoa o descobre em
si - Cárcere infinito e acrescenta, depois de um travessão, porque és infinito
não se pode fugir de ti.
Tenho neste texto o essencial para defender
a minha tese: o vazio é virtual e pode, em certas condições, ser virtuoso.
Primeiro argumento - a Natureza tem
horror ao vazio; ou: não há vazio na Natureza.
Esta Natureza, que grafei com N
maiúsculo, é todo o mundo natural físico e químico; não há nele vazio porque o
espaço é gerado pela expansão da matéria no tempo; e um espaço exterior à
matéria é impensável pela inteligência humana. A matéria pode ser sólida,
líquida ou gasosa mas porque é ela que define o espaço, não há vazio; o vazio
seria um espaço sem matéria o que não é concebível no interior da categoria
lógica que, bem ou mal, conforma o nosso pensamento.
No mundo real, inorgânico ou
biológico, não há vazio, não há espaço sem matéria. Quando os histopatologistas
descrevem, nos tecidos, espaços sem matéria, espaços vazios, como o espaço de
Disse entre as células hepáticas, apenas estão a descrever artefactos da
técnica histológica aplicada a tecidos mortos pela fixação.
No mundo natural não há vazio, nem
real nem virtual.
Se não há vazio na natureza - e é
certo que não há, nem mesmo os buracos negros no universo cósmico são espaços
vazios e eram os últimos que resistiam - se a natureza é toda ela compacta
então é fora desta opacidade da natureza que poderemos encontrar o tal vazio
anunciado no programa deste encontro de psicanálise e cultura e dado, pelos
organizadores, como insuportável.
Onde descobrirei esse vazio?(...)Não
está de certo na Psicanálise. Ciência recente, ela está bem cheia de cultores
especializados, de pacientes confiantes, de teorias, de doutrinas, de métodos
de intervenção, de criatividade por vezes quase esotérica de tão profundamente
interpretativa ou explicativa. Cheia
também de alguns fracassos e desilusões.
Também não estará na Cultura porque
esta enche-se todos os dias com os produtos da actividade criativa da
inteligência humana, racional ou emocional. E quando os velhos, como eu, dizem:
os jovens actuais vivem num vazio cultural, apenas estamos a afirmar que estão
cheios de uma cultura diferente da nossa. Não leram Eça de Queiroz, mas devoram
Jeffrey Archer; não ouvem Bach mas compraram milhões de discos do Good-Bye
Rose; e por aí fora.
Se não é o vazio na Natureza, nem na
Psicanálise, nem na Cultura, será o vazio no homem que é, afinal, tudo isto, é
natureza, é espírito e é cultura?
Vou assumir que é o vazio no Homem; o
tal animal aflito, no dizer de Gedeão, que vai de mais infinito a menos
infinito. Então haverá algum espaço,
entre as duas coordenadas do Infinito, que possa apresentar-se, ao homem e no
homem como um espaço vazio? Há, mas é um vazio virtual.
Para expor este segundo argumento - o
vazio no homem é virtual - vou ter de arranjar um conceito de homem e
movimentar-me dentro dele.
Chegado a este ponto, confrontado com
semelhante necessidade metodológica - propor uma concepção de homem - que é uma
tarefa ciclópica e, se calhar, para mim, inacessível, olho a folha branca e
sinto-me vazio.
Se conseguir escrever alguma coisa que
vos interesse ou apenas vos irrite concluirei que este vazio é, claramente,
virtual; veremos no final se acabou por ser virtuoso.
(…) Quando a inteligência de alguns
gregos, meio século antes da nossa era, se defrontou com o vazio no
entendimento do homem e do seu lugar no mundo, iniciou uma reflexão profunda e
tão virtuosa que, ainda hoje, é dela que se alimentam todos os filósofos; essa
reflexão criou conceitos novos e as palavras que passaram a simbolizá-los e a
exprimi-los pelo seu conteúdo significante - Caos, Cosmos, Physis, Logos,
Ethos, Pathos, Psyché e tantos outros. Esta reflexão grega, incontornável como
se diria hoje, abriu o caminho para a reflexão racional dos homens que se
continuou até ao momento presente e se continuará no futuro. Excelsamente
virtuosa, direi, a forma como foi superado este vazio.
Outro exemplo é o do vazio gerado pela
descoberta consciente da morte pessoal.
A morte - muito mais do que o amor que
não é vazio, é plenitude - foi, é e continuará a ser a maior fonte de criações
culturais e artísticas todas orientadas, expressa ou simbolicamente, para a
superação do vazio gerado pela vivência auto-consciente da morte individual. E
isto acontece em todas as sociedades humanas, sejam quais forem as linguagens
culturais disponíveis - das pirâmides egípcias, à Pietá de Miguel Ângelo ou às
desconstruções de Marc Chagal.
Onde quero chegar, porque é tempo de
terminar, é que a percepção auto-consciente do vazio seja ele afectivo,
emocional, intelectual ou total, pode ser, tem sido o ponto de arranque para um
trabalho de superação que pode não encher o vazio individual - Dostoievsky
teve a virtude de criar uma obra genial mas viveu no vazio até ao fim - mas dá,
a este vazio, um carácter virtuoso para o próprio e para os outros homens.
Melhor ser vazio, assim, do que estar
cheio de si próprio, engordado por uma balofa auto--suficiência e pela empáfia
orgulhosa de tudo saber e tudo controlar.
Melhor sofrer este vazio do que não
levar "angústia para o jantar”, e poder dormir o sono tranquilo dos
antropóides sem história.
Melhor viver perigosamente o seu vazio
pessoal do que gastar, inutilmente, a vida no conformismo cinzento de todo o
mundo para ser, afinal, ninguém.
O vazio pode ser virtuoso e criativo.
A vida cheia, supostamente cheia, pode
estar oca e ser inútil.
Para terminar como comecei com uma
referência hebraica, chamo em meu auxílio Job, o paradigma do homem esvaziado
de tudo mas que soube virtualizar e superar esse vazio - da família, da saúde,
dos bens.
Eis como Job preencheu o seu vazio -
"Nudus evertit ex utero matris mea et nudo reverterit illuc" - "
Saí nú do ventre da minha mãe e nú voltarei para ele. O Senhor mo deu o Senhor
mo tirou; Bendito seja o Nome do Senhor”.
A folha já não está branca. Ficou
enegrecida com uma escrita miúda, nervosa, pouco ágil. Encheu-se de ideias algo amontoadas, umas de
certo, absurdas, outras talvez desafiantes e proporcionadoras de reflexão mais
alargada e ambiciosa. Não sei.
Sei que me livrei de um vazio real - a
folha branca a irritar-me com a sua brancura inútil - e não de um vazio
virtual.
Por isso, tenho agora a certeza, nada
criei de virtuoso." Daniel Serrão,
in site Daniel Serrão
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