O Afinador de Palavras
Quando se é jovem, tudo o que se vê
parece próximo: é o futuro.
Quando se é velho, tudo o que se vê
parece distante: é o passado.
Anónimo
Houve um espaço de tempo feito de tempo,
um tempo terrivelmente igual a si próprio, nulo e, no entanto, apreendido como uma infinidade insuportável!...Quanto ao
fim insolúvel , eis o que aconteceu.
Paul
Valéry, O
escravo-Fragmentos narrativos
Viera
. O apelo tinha sido forte. E agora que chegara, perdera-se. Tudo havia mudado.
Não sabia quem o chamara. Apenas lhe chegara um eco de vozes filtradas pela distância. Repetira-se em tons diferenciados que deixava distinguir
uma amálgama de gente diversa. Palavras e palavras desarticuladas enchiam
aquele eco de uma ressonância estranha. Num momento, quase reconheceu o pesadelo de um tempo passado. Um
tempo que julgara perdido na ruína do esquecimento.
Duas
guerras mundiais tinham eclodido. Os homens tinham cegado logo que se
esqueceram do horror primeiro que tinham
provocado, nos primórdios do século XX.
Num tempo curto,
revitalizaram palavras marginais para um uso capital: uma segunda guerra apanhou o mundo inteiro. De
novo, as multidões em fuga perante o
furor das armas.
Da
loucura de um homem, nascera um tenebroso projecto de destruição que se
propalou rapidamente pelas mentes exacerbadas dos seus correligionários. Era a
Europa a chamar as palavras impensáveis, proscritas, convertidas em slogan da verdade. Uma verdade que levou a fuzilamentos ignóbeis, a um extermínio inominável. Fora o tempo da
vergonha.
Laborara
durante muitos anos. As palavras tinham adoecido. A enfermidade era tal que, de
entre as ruínas , escapava um halo tão
fétido que lhe tolhia os movimentos. Nem
sempre fora capaz de o enfrentar. Esgotou-se na afinação. Reabilitara um código de palavras que tinha sido banido e que seria regido por um código de conduta que, para o efeito, também fora elaborado.
Concluíram
que a sua missão havia terminado. Partira há muitos anos. Despedira-se daquele
mundo tão assimetricamente vulnerável. Quisera acreditar que não mais seria
chamado.
As
promessas , as amnistias, os tratados , os convénios tinham sido celebrados.
Quase lhe fora imposta uma reforma antecipada. Sim , porque a miséria seria erradicada
e novos desafios propiciariam outras práticas. A livre circulação do progresso,
a mundialização da informação, a prática do espírito científico, a reformulação
das teorias obsoletas que conduziram ao caos, a consciência de finitude como
antídoto à desmesurada ganância da supremacia étnica e dos perigosos projectos
eugénicos, a valorização e disseminação da arte
em todas as suas vertentes. Tudo convergia para o sucesso de um bem estar universal que nasce da trégua,
que germina na paz. Da míngua antevia-se a estabilidade
partilhada.
Que
acontecera. Regressava. O grito fora
excessivo. Ruidoso. Dorido. Não fora capaz de resistir. Pisava o mesmo chão sem
que pudesse enxergar aquele que havia abandonado. As cores rodavam dentro de si
numa dança lenta, sem melodia para seguir.
Tinha
de se concentrar. Encontrar o jeito de se deslocar. Perdera os poderes? Nunca.
Os olhos ainda pestanejavam. Não cegara. Não. Era o mundo que estava cego. A
escuridão apanhara-o . Pois , estava, agora, no reino da escuridão.
Adormeceu.
O caminho tinha sido longo. E aquele negrume, aquele denso véu de uma noite
escura era uma muralha. Pesava-lhe tanto como a surpresa do desencanto.
Teria
o homem perdido a capacidade de se
espantar? Onde estaria o assombro? A revelação ? O mistério da descoberta? A consciência
do não saber ? A busca do conhecimento? A magia da Arte?
E
as palavras que não apareciam. Mas não eram elas que tudo nomeavam ? “In
principio erat Verbum” - se no princípio era a Palavra, urgia encontrá-las. Por
elas regressava.
Ergueu-se
. Afinal o gesto e o caminho estavam nele. As palavras tinham cor. Tinha de
decidir por onde começar. E vestiu-se de
todas as cores.
O
horizonte emergiu. Fez- se luz. Via tão claramente que de horror se encheu . A
devastação era aterradora. Nada estava como deixara. Um amontoado de palavras
jazia em convulsão continuada. O ruído
era assustador.
Descortinou,
de imediato, o que o esperava. Lançou-se. Teria de avaliar o percurso e agir. Fora chamado.
E
partiu para se apresentar. Era ele : o afinador de palavras. Vinha em missão
porque fora requisitado . Oxalá nunca tivesse partido. O logro tinha sido
terrível.
Correu
ruas,
caminhos, campos , atalhos,
avenidas; pisou terra , calcorreou areia, sorveu mar, bebeu poeira. Nada lhe falhou. A tudo acorreu para lançar o desafio. E
ninguém o temeu.
Ninguém
o afrontava. Todos o procuravam. A crise das palavras estava
institucionalizada. Não havia reestruturação que lhe valesse.
Por
toda a parte, caíam novas e velhas palavras.
Sonantes, discretas;
redondas,
agudas;
estridentes, suaves;
castas, obscenas;
heroicas, cobardes;
gloriosas, vilipendiadas;
transparentes, opacas;
sérias, corrompidas;
brilhantes, obscuras;
velhacas, leais;
mórbidas, lúcidas.
Tombavam em série:
à unidade, ao retalho,
emparelhadas,
desirmanadas,
concatenadas, soltas,
humilhadas,
desprezadas. Não tinham qualquer préstimo. Agoniavam aos magotes antes que tivesse
iniciado o seu trabalho. Teria de as socorrer, com urgência.
Guardou
as cores . Vestiria uma cor diferente em
cada dia. As palavras eram coloridas. Identificavam-se pela cor. Assim, todas teriam igualdade de oportunidades, um conceito
que fora tão valorizado, mas tão pouco aplicado." Maria José Vieira de Sousa, in " O Afinador de palavras", 2016
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