No dia da cor vermelha
Mistério , vai-te, esmagas-me! Ah,
partir
Esta cabeça contra aquele
muro.
Fernando Pessoa, “ Fausto”
Faire un bon usage des maladies
Pascal
"Ainda
não tinha vestido totalmente o vermelho , já os gritos lhe chegavam. Ouviam-se
distintamente. Seria fácil localizá-los. Gritos estrídulos, misturados com o
retinir do metal e o silvo de
imprecações, espalhando-se sem ordem e rigor. E eis que apareciam algumas
palavras. Erguiam- se em altaneiro porte, estrebuchando conflito, apesar
de minadas pela doença que lhes
deformava o corpo e dominava a mente.
Volúpia.
Dinheiro. Insurreição. Ganância . Soberba. Lucro. Uma plataforma de palavras
afins , organizada em hordas cruéis a subjugar outras de
significantes mais nobres. Esgrimiam-se apesar da beleza que o encarnado, o
vermelho pode incorporar.
O
tempo da riqueza pela riqueza enchera as
cabeças de cifrões. E era do dinheiro o maior poder. O maior sortilégio daquele tempo. Como estancar tal perfume ?
Enquanto
discorria, as palavras sucumbiam em
aflitiva luta pela sobrevivência. O jugo das mais fortes oprimia as mais discretas,
as mais límpidas, embora estas não se permitissem morrer. Gritavam, em surdina, em nítido contraste com
a estridência dos opressores que enchia o ar.
Começaria
pela fome, pela pobreza, pelo desespero, pelo desemprego, pelo abandono, pela
velhice, pela natalidade, pela saúde, pela paixão, pela felicidade. Todas eram importantes. Todas
acorriam à sua passagem numa súplica justificada . Escapava-lhe, porém, a mais
valiosa. Aquela que seria capaz de redimir, aquela cuja força regeneradora era
reconhecida : a Dignidade.
Ainda
não a vira. Não a distinguira entre os gritos. Onde estaria? Que seria dela?
Procurou-a.
Ofegante,
inanimada esmorecia com o peso da ganância que a violentava num esforço
heroico, enquanto as forças ainda lhe pertenciam. Numa Travessa sem nome, estava em titânica desvantagem. A
ganância era um manto púrpura a esmagar
a túnica vermelha da Dignidade.
Que fazer perante tão rude inconformidade?
Socorreu-se
dos sons e fez ouvir Wagner. O
triunfo exige sempre um faustoso manto. O poder da ilusão prevalece
nos espíritos néscios onde reina a ganância.
Fiel
à força da sedução da vã glória, o manto
ergueu-se e a dignidade libertou-se
daquele vil peso. Vinha combalida, desgastada pelo espezinhamento constante dos
poderosos que, de ganância em ganância, tinham transformado o mundo num mercado de agiotas.
Mundo
onde os nomes eram traduzidos por
algarismos e as palavras esqueciam a
força da nomeação. Mundo onde os adjectivos se colavam aos números como cola que pega e se acomoda
em território alheio.
Ao
afinar aquela palavra, seria como
recuperar a alma adormecida da
humanidade, como restabelecer o primeiro
direito universal do Homem.
Concentrou-se.
Começou a afiná-la. Agora, era o génio de
Mozart que se ouvia.
Quando
afinava as palavras trazia a música nos ouvidos. Que poder tinham os sons. Os movimentos molto allegro e andante da Sinfonia nº 40 ressoavam e imperavam . Como o
contagiavam em inspiração e perícia.
Redesenhou,
limpou, envernizou, curou aquela enorme
palavra.
Num
longo vestido vermelho vivo, ela olhou-o e sorriu-lhe deslumbrante. E com ela de pé, firme e robusta , outras vieram animadas pela
metafísica, pela semântica, pela música de Mozart ou pela simbologia do
vermelho que nunca deixa de acolher quem
vem por bem.
Todas
as palavras que se solidarizavam , que
se irmanavam chegavam céleres. Apresentavam-se radiosas , vestidas
no mais brilhante vermelho renovado.
Vinham em fraterna celebração, coligadas
por uma profunda comunhão identitária.
Ao
restaurar a Dignidade , tudo se precipitara. Tudo se congregara.
Naquele
dia, o caminho estava feito."
Maria José Vieira de Sousa, in " O Afinador de palavras" , 2016
Que belo texto. Poético, substantivo, uma simbologia quase mágica do vermelho.
ResponderEliminarContou-me alguém que o escritor e jornalista brasileiro Otto Lara Resende, antes de publicar seus textos, enviava-os para o nosso contista curitibano Dalton Trevisan -- tão discreto que sequer foi receber, pessoalmente, o Prêmio Camões, em 2012 -- recomendando-o: “Seja cruel em sua avaliação”, para que seu conteúdo tivesse maior clareza, síntese e lucidez possível.
Diante deste, como das demais partes, já publicadas, desse belíssimo texto da Maria José, “O Afinador de palavras”, a única recomendação que poderíamos fazer é parabenizá-la pela sua síntese irretocável, nos ensinando, mais uma vez, como afinar as palavras.
Manoel de Andrade