deixando inteira, por legado,
uma semente virgem que estremece
logo que o vento a tenha desnudado.
Eugénio Andrade, As Mãos e os Frutos (1948)
Num tempo em que se constata a crescente violência doméstica, relembra-se o estudo divulgado pela APAV , Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, sobre os crimes perpetrados pelos filhos contra os pais idosos. São números chocantes. Vivemos tempos terríveis em que a piedade deixou de ter lugar na sociedade e quase foi excluída da família. Os Lares albergam os pais que muitos filhos recusaram . O amor filial sucumbe no dealbar da velhice .Os pais deixam de ser o apoio para serem vistos como o problema. E se não são apenas o estorvo que se sacode , muitos são alvo da mais infame violência em crimes hediondos, inqualificáveis numa mente sã.
Portugal tem falta de atenção e um notório despudor na política de incentivos de apoio familiar ao idoso. Num país de crises múltiplas, a crise do amor é também uma outra vertente de um infortúnio que cresce na família.
Ai , meu pobre Portugal. Que te fizeram? Que diria Camilo Castelo Branco ? E Herculano?
Crimes contra idosos
“Os filhos foram os autores de quase 40% dos crimes de violência doméstica praticados contra mais de 2.600 idosos acompanhados pela Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) entre 2013 e 2015, situação que tem vindo a aumentar.
Enquanto no período 2013-2014 o autor do crime, na sua maioria, era o cônjuge, actualmente assiste-se a “um aumento das situações em que a vítima é pai ou mãe”, disse hoje à agência Lusa a coordenadora executiva do Centro de Formação APAV, Maria de Oliveira.
A APAV registou, entre 2013 e 2015, 3.214 processos de apoio a idosos, em que 2.603 foram vítimas de crime e de violência, segundo dados da associação divulgados a propósito do Dia Internacional das Pessoas Idosas (01 de Outubro).
Estes valores traduziram-se em 6.264 factos criminosos. Destes, 5.072 (81%) foram crimes de violência doméstica, 860 (13,7%) foram crimes contra as pessoas e 288 (4,6%) contra o património.
Entre os crimes de violência doméstica, destacam-se os maus-tratos psíquicos, com 1.924 casos (30,7%), e os maus-tratos físicos, 1.244 casos (19,9%). Houve ainda 846 idosos que foram vítimas de ameaça/coação (13,5%) e 520 de injúrias e difamação (8,3%).
A maior parte dos crimes foram cometidos dentro da família, sendo os filhos (37,9%) e o cônjuge (28,2%) os principais agressores. Os netos protagonizaram 4,4% dos crimes e os vizinhos 4,7%.
Analisando estes dados, Maria de Oliveira disse que “ainda não espelham a realidade que acontece no país”, mas confirmam uma realidade que a APAV já suspeitava e para a qual tem vindo a alertar de que “existem relações familiares que exercem relações de poder e decisão das coisas da vida mais básicas” do idoso.
“Estamos a falar de filhos que exercem violência contra os pais”, frisou a técnica, afirmando que “ainda há muito desconhecimento e alguma permissividade para continuarem a exercer estas situações”.
Os dados demonstram também um aumento no número de processos de apoio: 941 em 2013, 1.068 em 2014 e 1.205 em 2015, o que, segundo a técnica, se deve também a “uma maior consciência da população” para “determinados comportamentos” exercidos contra as pessoas idosas que constituem um crime.
Traçando o perfil destes idosos, a APAV refere que mais de metade tinha entre 65 e 74 anos, 44,1% eram casados e pertenciam a um tipo de família nuclear com filhos (32,8%).
Os dados indicam também que 36,3% das vítimas tinham idades entre os 75 e os 84 anos e 12,5% mais de 85 anos.
O número de autores de crime contabilizados entre 2013 e 2015 ultrapassou o número de vítimas (2.603), ascendendo aos 2.730.
Em mais de 65% das situações, o agressor era homem, com idades entre os 65 e os 74 anos. Foram ainda identificados sete agressores com idades entre os 11 e os 17 anos e 52 com idades entre os 18 e os 24 anos.
Os dados adiantam que 20,5% dos autores dos crimes estavam reformados, 19,3% desempregados e 13,5% empregados.
Tendo em conta o tipo de problemáticas existentes, prevalece o tipo de vitimização continuada em cerca de 78% das situações, com uma duração média entre os dois e os seis anos (12,4%).
A residência comum é o local mais escolhido para a “ocorrência dos crimes”, em 56,8% das situações, seguindo-se a casa da vítima (27,5%) e a via pública (6,1%).
As queixas/denúncias ficam-se nos 30,7% face ao total de autores de crimes assinalados.
Maria de Oliveira explicou que, “havendo uma relação familiar, é muito difícil as pessoas denunciarem” a situação, porque “têm sentimentos de vergonha e de culpa”.
“Se for uma relação de pai ou mãe sentem que falharam enquanto educadores”, rematou.” Agência Lusa, 29.09.2016
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