sexta-feira, 18 de novembro de 2016

O apelo tinha sido forte

O Afinador de Palavras


Quando se é jovem, tudo o que se vê parece próximo: é o futuro.
Quando se é velho, tudo o que se vê parece distante: é o passado.
                                                                               Anónimo

Houve um espaço de tempo feito de tempo, um tempo  terrivelmente  igual  a  si  próprio, nulo e,       no entanto,  apreendido   como uma   infinidade insuportável!...Quanto ao fim insolúvel , eis o que aconteceu.
Paul Valéry, O escravo-Fragmentos narrativos

Viera . O apelo tinha sido forte. E agora que chegara, perdera-se. Tudo havia mudado. Não sabia quem o chamara. Apenas lhe chegara um eco de vozes  filtradas pela distância. Repetira-se  em tons diferenciados que deixava distinguir uma amálgama de gente diversa. Palavras e palavras desarticuladas enchiam aquele eco de uma ressonância estranha. Num momento, quase  reconheceu o pesadelo de um tempo passado. Um tempo que julgara perdido na ruína do esquecimento.
Duas guerras mundiais tinham eclodido. Os homens tinham cegado logo que se esqueceram do horror primeiro  que tinham provocado, nos primórdios do século XX.  Num tempo curto,  revitalizaram  palavras  marginais para um uso  capital: uma  segunda guerra apanhou o mundo inteiro. De novo, as multidões em  fuga perante o furor das armas.
Da  loucura de um homem, nascera  um tenebroso projecto de destruição que se propalou rapidamente pelas mentes exacerbadas dos seus correligionários. Era a Europa a chamar as palavras impensáveis, proscritas, convertidas  em slogan da verdade. Uma verdade que levou   a fuzilamentos ignóbeis, a um extermínio  inominável. Fora o tempo da vergonha.
Laborara durante muitos anos. As palavras tinham adoecido. A enfermidade era tal que, de entre as ruínas , escapava um halo  tão fétido que lhe tolhia  os movimentos. Nem sempre fora capaz de o enfrentar. Esgotou-se na afinação. Reabilitara  um código de palavras  que tinha sido banido  e que seria regido por  um código de conduta que, para o efeito,  também fora elaborado.
Concluíram que a sua missão havia terminado. Partira há muitos anos. Despedira-se daquele mundo tão assimetricamente vulnerável. Quisera acreditar que não mais seria chamado.
As promessas , as amnistias, os tratados , os convénios tinham sido celebrados. Quase lhe fora imposta uma reforma antecipada. Sim , porque a miséria seria erradicada e novos desafios propiciariam outras práticas. A livre circulação do progresso, a mundialização da informação, a prática do espírito científico, a reformulação das teorias obsoletas que conduziram ao caos, a consciência de finitude como antídoto à desmesurada ganância da supremacia étnica e dos perigosos projectos eugénicos, a valorização e disseminação da arte  em todas as suas vertentes. Tudo convergia para o sucesso de um bem estar universal que nasce da trégua, que germina  na  paz. Da míngua antevia-se a estabilidade partilhada.
Que acontecera. Regressava.  O grito fora excessivo. Ruidoso. Dorido. Não fora capaz de resistir. Pisava o mesmo chão sem que pudesse enxergar aquele que havia abandonado. As cores rodavam dentro de si numa dança  lenta, sem melodia  para seguir.
Tinha de se concentrar. Encontrar o jeito de se deslocar. Perdera os poderes? Nunca. Os olhos ainda pestanejavam. Não cegara. Não. Era o mundo que estava cego. A escuridão apanhara-o . Pois , estava, agora, no reino da escuridão.
Adormeceu. O caminho tinha sido longo. E aquele negrume, aquele denso véu de uma noite escura era uma muralha. Pesava-lhe tanto como a surpresa do desencanto.
Teria o  homem perdido a capacidade de se espantar? Onde estaria o assombro? A revelação ? O mistério da descoberta? A consciência do não saber ?  A busca do  conhecimento? A magia da Arte?
E as palavras que não apareciam. Mas não eram elas que tudo nomeavam ? “In principio erat Verbum” - se no princípio era a Palavra, urgia encontrá-las. Por elas regressava.
Ergueu-se . Afinal o gesto e o caminho estavam nele. As palavras tinham cor. Tinha de decidir por onde começar. E vestiu-se de  todas as cores.
O horizonte emergiu. Fez- se luz. Via tão claramente que de horror se encheu . A devastação era aterradora. Nada estava como deixara. Um amontoado de palavras jazia  em convulsão continuada. O ruído era assustador.
Descortinou, de imediato, o que o esperava. Lançou-se. Teria de avaliar o percurso e  agir. Fora chamado.
E partiu para se apresentar. Era ele : o afinador de palavras. Vinha em missão porque fora requisitado . Oxalá nunca tivesse partido. O logro tinha sido terrível.
Correu  ruas,  caminhos,  campos ,  atalhos,  avenidas; pisou terra , calcorreou areia, sorveu mar,  bebeu poeira. Nada lhe falhou.  A tudo acorreu para lançar o desafio. E ninguém o temeu.
Ninguém o afrontava. Todos o procuravam. A crise das palavras estava institucionalizada. Não havia reestruturação que lhe valesse.
Por toda a parte, caíam novas e velhas palavras.
Sonantes, discretas;
redondas, agudas;
          estridentes, suaves;
       castas, obscenas;
                heroicas, cobardes;
       gloriosas, vilipendiadas;
                transparentes, opacas;
                           sérias, corrompidas;
                                                                        brilhantes, obscuras;
          velhacas, leais;
                                                                                      mórbidas, lúcidas.
                                                                                    Tombavam em série:
                                                      à unidade,  ao retalho,
                                  emparelhadas, desirmanadas,
               concatenadas, soltas,
humilhadas, desprezadas. Não tinham qualquer préstimo. Agoniavam aos magotes antes que tivesse iniciado o seu trabalho. Teria de as socorrer, com urgência.
Guardou as cores . Vestiria uma  cor diferente em cada dia. As palavras eram coloridas. Identificavam-se pela cor. Assim, todas  teriam igualdade de oportunidades, um conceito que fora tão valorizado, mas tão pouco aplicado." Maria José Vieira de Sousa, in " O Afinador de palavras", 2016

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