No início do Ensaio " Diante do Nariz" , George Orwell propõe-se , através de alguns exemplos, mostrar a estranha capacidade do Homem em acreditar ao mesmo tempo em duas coisas que se anulam uma à outra. Estreitamente ligado a isto está a capacidade de ignorar factos óbvios e imutáveis, e que terão de ser encarados mais cedo ou mais tarde. É sobretudo no pensamento político que estes vícios prosperam.
Escrito em 1946, este Ensaio revela uma actualidade surpreendente que nos apraz registar. Transcreve-se um excerto da parte final deste interessante texto.
" Não vale a pena multiplicar os exemplos. O ponto em questão é que todos nós somos capazes de acreditar em coisas que sabemos serem falsas e depois, quando se torna claro que estávamos errados , somos capazes de torcer descaradamente os factos para tentar mostrar que tínhamos razão. Do ponto de vista intelectual, é possível prolongar este processo indefinidamente: o seu único obstáculo é que mais tarde ou mais cedo uma crença falsa esbarra de frente com a sólida realidade, normalmente num campo de batalha.
Quando consideramos toda a esquizofrenia que prevalece nas sociedades democráticas , as mentiras que é preciso dizer para captar votos, o silêncio a propósito dos assuntos, as distorções da imprensa, é tentador acreditar que nos estados totalitários há menos impostura, maior capacidade para encarar os factos. Ali, pelo menos, a classe dirigente não está dependente do favor popular e pode dizer a verdade de forma crua e brutal. Goering pôde dizer " Quereis canhões ou manteiga?", ao passo que os seus homólogos democráticos tiveram de embrulhar a mesma ideia em centenas de palavras hipócritas.
Na verdade, porém, a fuga à realidade é muito idêntica em toda a parte e tem consequências muito similares. Ao povo russo foi inculcada durante anos a ideia de que vivia melhor que qualquer outro e os cartazes de propaganda mostravam as famílias russas diante de mesas cheias de comida e o proletariado dos outros países ocidentais eram tão superiores às dos russos que evitar qualquer contacto entre os cidadãos soviéticos e os estrangeiros se tornou um princípio político de base. Depois, como resultado da guerra , milhões de russos comuns entraram na Europa; e quando regressaram a casa, a anterior fuga á realidade será forçosamente expiada com toda a sorte de atritos. Se os alemães e os japoneses perderam a guerra, foi em grande parte porque os seus dirigentes foram incapazes de encarar factos que eram evidentes para qualquer olhar imparcial.
Ver o que está diante do nosso nariz exige uma luta constante. Algo que nos ajuda nesse sentido é manter um diário, ou pelo menos manter algum tipo de registo das nossas opiniões sobre acontecimentos importantes . Caso contrário, quando alguma ideia particularmente absurda é destruída pelos acontecimentos , podemos simplesmente esquecer que acreditámos nela. Os prognósticos políticos costumam estar errados, mas mesmo quando fazemos um que bate certo, descobrir por que acertámos pode ser um exercício muito esclarecedor . Em geral, só acertamos quando os nossos desejos ou os nossos medos coincidem com a realidade. Reconhecer este facto não nos livra, é claro, dos nossos sentimentos subjectivos, mas permite que em certa medida os isolemos da nossa razão e façamos prognósticos isentos, segundo as regras da aritmética. na sua vida pessoal, a maior parte das pessoas é bastante realista. quando estamos a fazer o nosso orçamento semanal, dois mais dois dá sempre quatro. A política, em contrapartida, é uma espécie de mundo subatómico ou não-euclidiano, onde é muito fácil que a parte seja amior do que o todo ou que dois objectos estejam em dois sítios simultaneamente . daí as contradições e incongruências que registei acima, todas elas derivadas , em última análise, duma secreta convicção de que as nossas ideias políticas , ao contrário do nosso orçamento semanal, nunca serão postas à prova pela sólida realidade."
George Orwell, in " Ensaios escolhidos" ,Relódio D'Água Editores, Abril de 2016, pp 293,294,295
Ver o que está diante do nosso nariz exige uma luta constante. Algo que nos ajuda nesse sentido é manter um diário, ou pelo menos manter algum tipo de registo das nossas opiniões sobre acontecimentos importantes . Caso contrário, quando alguma ideia particularmente absurda é destruída pelos acontecimentos , podemos simplesmente esquecer que acreditámos nela. Os prognósticos políticos costumam estar errados, mas mesmo quando fazemos um que bate certo, descobrir por que acertámos pode ser um exercício muito esclarecedor . Em geral, só acertamos quando os nossos desejos ou os nossos medos coincidem com a realidade. Reconhecer este facto não nos livra, é claro, dos nossos sentimentos subjectivos, mas permite que em certa medida os isolemos da nossa razão e façamos prognósticos isentos, segundo as regras da aritmética. na sua vida pessoal, a maior parte das pessoas é bastante realista. quando estamos a fazer o nosso orçamento semanal, dois mais dois dá sempre quatro. A política, em contrapartida, é uma espécie de mundo subatómico ou não-euclidiano, onde é muito fácil que a parte seja amior do que o todo ou que dois objectos estejam em dois sítios simultaneamente . daí as contradições e incongruências que registei acima, todas elas derivadas , em última análise, duma secreta convicção de que as nossas ideias políticas , ao contrário do nosso orçamento semanal, nunca serão postas à prova pela sólida realidade."
George Orwell, in " Ensaios escolhidos" ,Relódio D'Água Editores, Abril de 2016, pp 293,294,295
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