"Se tivesse de recomeçar a vida , recomeçava-a com os mesmos erros e paixões. Não me arrependo, nunca me arrependi. Perdia outras tantas horas diante do que é eterno, embebido ainda neste sonho puído. Não me habituo: não posso ver uma árvore sem espanto, e acabo desconhecendo a vida e titubeando como comecei a vida. Ignoro tudo, acho tudo esplêndido, até as coisas vulgares : extraio ternura duma pedra. Não sei - nem me importo - se creio na imortalidade da alma, mas do fundo do meu ser agradeço a Deus ter-me deixado assistir um momento a este desabalado da vida. Isso me basta . Isso me enche : levo-o para a cova , para remoer durante séculos e séculos, até ao juízo final. Nunca fui homem de acção e ainda bem para mim: tive mais horas perdidas...Fugi sempre dos fantasmas agitados , que me metem medo. Os homens que mais me interessaram na existência foram outros : foram, por exemplo, D. João da Câmara, poeta e santo, Correia de Oliveira, um chapéu alto e nervos, nascido para cantar, Columbano e a sua arte exclusiva, e alguns desgraçados que mal sabiam exprimir-se. Conheci muitos ignorados e felizes. Meio doidos e atónitos. O Nápoles ainda hoje dorme sobre a mesma rima de jornais ?... Outro andava roto e dava tudo aos pobres. O homem é tanto melhor quanto maior quinhão de sonho lhe coube em sorte. De dor também.
A que se reduz afinal a vida? A um momento de ternura e mais nada...De tudo o que se passou comigo só conservo a memória intacta de dois ou três rápidos minutos . Esses sim! Teimam, reluzem lá no fundo e inebriam-me, como um pouco de água fria embacia o corpo. Só de pequeno retenho impressões tão nítidas como na primeira hora: hoje ouço como ontem os passos de meu pai quando chegava a casa; vejo sempre diante dos meus olhos a mancha azul ferrete das hidrângeas que enchiam o canteiro da parede. O resto esvai-se como fumo. Até as figuras dos mortos , por mais esforços que faça , cada vez se afastam mais de mim...Algumas sensações, ternura, cor, e pouco mais. Tinta. Pequenas coisas frívolas, o calor do ninho , e sempre dois traços na retina, o cabedelo de oiro, a outra-banda verde...Passou depois por mim o tropel da vida e da morte , assisti a muitos factos históricos , e essas impressões vão-se desvanecidas. Ao contrário, este facto trivial ainda hoje o recordo com a mesma vibração: a morte daquela laranjeira que, de velha e tonta, deu flor no Inverno em que secou. O resto usa-se hora a hora e todos os dias se apaga. Todos os dias morre.
Lá está a velha casa abandonada e as árvores que minha mãe, por sua mão, dispôs: a bica deita a mesma água indiferente , o mesmo barco arcaico sobre o rio, guiado à espadela pelo mesmo homem do Douro, de pé sobre a gaiola de pinheiro. Só os mortos não voltam. Dava tudo no mundo para os tornar a ver, e não há lágrimas no mundo que os façam ressuscitar."
Raul Brandão, in "Se tivesse de recomeçar a vida", Livraria Civilização Editora, pp. 9,10, 11
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