"Foi ontem! Foi ontem que os
conheci e que te conheci, foi ontem que te amei – e estamos ambos velhos! O
tempo – não sei se o tempo existe … Pelo menos não decorre com regularidade.
Custa muito a passar até certa idade, e depois , atropela-se , desaparece,
escoa-se some-se. E o que me impressiona
mais não é o tempo , é a distância. Há uma coisa monstruosa que nos leva e
empurra, e as figuras e os factos
apagam-se pouco a pouco. Tu ainda
conservas as feições queridas ,
mas eu vejo-as já mais longe … Oh minha
ternura , não tardarás a estar tão
afastada de mim, que mal te distinguirei! Cada vez o espaço se dilata mais. Uma coisa monstruosa
se interpõe entre nós , e nos leva de
escantilhão não sei para onde…
Uma alma é preciso criá-la,
e quando está criada - deixá-la. Tanta
luta, tanta dúvida, perguntas ansiosas, respostas que nos deixam perplexos ,
necessidade de recalcar os instintos , e quando, enfim, a gente tem, à
custa de dor, construído um universo que
não existe e criado uma alma que não tinha , está cansada, velha , exausta, e é
forçoso deixá-la!"
Raul Brandão, in “ O
silêncio e o lume” de “Se tivesse de
recomeçar a vida”, 1918, p 34 , Ed. Civilização
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