Mãe
Por
António Lobo Antunes
“A pouco e pouco fui admitindo o seu
amor pelos filhos enquanto ela se queixava da sua lenta cegueira que a impedia
de ler. Quantos homens se podem gabar da sua mãe gostar de Proust? E de Céline?
E dos grandes russos? E dos meus, que lamentava – Porquê livros tão desesperados
se a tua vida é boa?
Quando o Pedro se foi embora a Mãe
disse
– Uma mãe não tem o direito de
continuar viva com um filho morto
e, como não tinha o direito de
continuar viva, foi-se embora igualmente. Tão magra de tristeza que não fazia
relevo no caixão. Sem cenas, sem partes gagas, sem lágrimas quase, com uma
imensa dignidade que sempre foi a dela. Era magra, pequena, de aparência frágil
e dura como ferro. Tivemos sempre os dois uma relação difícil. Só quando estive
muito doente e ela veio ver-me percebi que dava a vida por mim, percebi o que
os filhos representavam para ela. E fez seis. E ensinou-os a ler. E casou com
um homem difícil, de qualidades e defeitos enormes. Ensinou-lhes mais coisas
depois de os ensinar a ler. Casou com um homem colérico, caprichoso, mimado,
inteligente, sedutor, honesto, insuportável às vezes, irresistível outras. Vi-a
beijar-lhe a boca no caixão. De volta do enterro disse-lhe
– Isto sem o pai parece vazio
ele que passava a maior parte do tempo
fechado no escritório, a ouvir música, a ler, a estudar e quase só o
encontrávamos à mesa. E a Mãe respondeu
– É que ele tinha uma presença muito
forte.
Devia ter: deu-me cargas de porrada
memoráveis. Aí pelos catorze anos abriu as portas de madeira da janela do
quarto
(era uma casa antiga)
porque eu estava a dormir,
atrasadíssimo para o liceu. Perguntei-lhe
– Vem assistir ao acordar de um génio?
Ficou a olhar para mim de boca aberta
e nunca mais me tocou. Não me disse nada mas disse ao Pedro
– O António tem faísca
o que, da parte dele, era o maior dos
elogios e deixou de me maçar com as minhas catastróficas prestações escolares e
a ler às escondidas o que eu escrevia, ele que não possuía nem sentido de humor
nem talento criativo. Muitos anos mais tarde tirou um caderno da gaveta:
– Vê isto.
chamava-se Máximas Mínimas. Folheei o
isto, perguntei
– Quer que lhe responda como escritor
ou como filho?
respondeu-me
– Como escritor
opinei
– Pai o que fez não vale nada
e não imaginava que um caderno se
evaporasse tão depressa. A Mãe, felizmente, não escrevia, mas ocupava-se do
resto. Por exemplo pedir para me colocarem na fila da frente dado que eu não
ligava nenhuma às aulas. Não puseram e eu pude continuar a nem ouvir os
professores. Felizmente que os meus irmãos a compensavam sendo bons alunos
enquanto, na sua opinião, eu estava destinado a pedir esmola nas esplanadas.
Mas lá acabei o liceu, entrei para a Faculdade de Medicina onde reprovei
copiosamente até a Mãe me prometer a carta de condução se eu passasse e dali
para a frente foi um despacho. Depois o estágio, depois a guerra, uma carta da
Mãe a anunciar-me com grande cópia de pormenores o nascimento da Zézinha.
Começava assim: como há dois meses não temos notícias tuas não sabemos se estás
morto ou vivo. Para o caso de estares vivo
(por acaso estava)
nasceu-te uma filha, seguida da
descrição do parto com grande cópia de pormenores. Isto era típico da Mãe,
esconder a ternura. Excepto com o Miguel, talvez, a quem chamava pombinha
branca, minha pombinha branca, tratamento que eu detestaria mas, no fundo, não
se me dava de receber de vez em quando. Jamais me chamaram pombinha branca na
vida. Volta e meia, confesso, faz-me falta. Bom, depois com todos já adultos as
pombas levaram sumiço. Às quintas- -feiras, já mais perus que pombinhas
jantávamos em casa dos Pais. Cada um tinha a sua sala, a da Mãe cheia de
retratos, a do Pai cheia de livros e discos. Pedia-me
– Ouve lá isto
e tanto podia ser Coltrane como música
barroca e, de repente, uma noite, percebi que ele tinha admiração por mim e que
ma dava através da minha filha Joana, devido ao seu imenso pudor. A Mãe, essa,
queria sempre que eu lhe dissesse poesia. Adorava António Nobre, que ela não
aceitava que fosse maricas
– Que disparate
e, volta e meia, nos intervalos dos
versos, declarava desafiar qualquer mulher no mundo a ser capaz de pôr cá fora
filhos mais bonitos e inteligentes que os dela. Quando foi da votação do aborto
votou a favor:
– As mulheres devem ser donas do seu
corpo embora eu nunca aceitasse que me fizessem um.
A pouco e pouco fui admitindo o seu
amor pelos filhos enquanto ela se queixava da sua lenta cegueira que a impedia
de ler. Quantos homens se podem gabar da sua mãe gostar de Proust? E de Céline?
E dos grandes russos? E dos meus, que lamentava
– Porquê livros tão desesperados se a
tua vida é boa?
Não me percebia muito bem, era uma
criatura estranha para ela mas era seu filho. E depois a memória dele? E depois
a inteligência? E andávamos nisto quando o Pedro morreu. Foi de repente e foi
horrível. Na sua cabeça e no seu coração perdeu o direito de estar viva, e
apressou-se a ir ter com o filho. Pronto. Entre nós houve sempre uma relação
estranha. Quanto me amava, quanto é que eu a amava? O certo é que de vez em
quando, estando sozinho, me sai pela boca fora, sem eu dar conta, uma espécie
de grito
– Quero a minha Mãe
e palavra de honra que sinto a sua mão
a fazer-me uma festa.”
António Lobo Antunes, em Crónica publicada
na revista Visão , em 23.03.2016
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