Os artifícios internacionais
"O recurso a reivindicações, conflitos, incidentes, na ordem internacional,
usados por governos em dificuldades internas, tem exemplos vulgares, e hoje
talvez de mais difícil uso. Isto porque o expediente faz apelo a brios nacionais
sobrepostos por arte mediática a dificuldades sentidas perante os eleitorados,
mas o globalismo, a interdependência crescente, as migrações avultadas, tudo
torna mais duvidosa a eficácia do recurso.
A senhora Thatcher, segundo alguns críticos, usou o caso das Malvinas,
tratado com grandeza churchiliana, quando os índices das sondagens ameaçavam a
sua permanência no poder. Admito que o seu livro A Arte de Governar, que
enfileira com elegância ao lado de O Príncipe, permite a sugestão, mas os
exemplos não faltam ao longo de uma história que não é exemplar.
Mais de uma vez, apoiando pregações de investigadores, de universitários, de
oficiais da Marinha, tenho alinhado na chamada de atenção para a importância da
plataforma continental, como janela de futura liberdade de um Portugal agora em
situação de protectorado, e até advertindo quanto ao risco de a definição do mar
europeu pela União anteceder o reconhecimento do nosso direito pela ONU, levando
finalmente a uma situação que pode recordar as sequências do mapa cor-de-rosa.
Os estudos de que já dispomos, quer de instâncias governamentais quer das
universidades, destacando-se a dos Açores, são valiosos e apoiam seguramente a
arrancada necessária para um novo futuro aceitável do País. Acontece porém que,
mais uma vez, se confirmou o aviso de que o imprevisto está à espera, e neste
caso trata-se da atitude do governo de Espanha não apenas em relação às ilhas
Selvagens, porque vem acompanhada pelo reacender da tradicional atitude em
relação a Gibraltar.
No primeiro caso trata-se da soberania portuguesa, no segundo da soberania
britânica, e em ambos de uma súbita paixão e interesse irrenunciável pelo que
chama rochedos, a designação preferida do primeiro-ministro espanhol para os
territórios em causa. É evidente que em relação às ilhas Selvagens é a
plataforma continental que pode ser invocada como interesse ambicionado em
relação com a procurada cobertura pela legitimidade invocada e no segundo, o que
ainda não lhe ocorreu, pode ser alegado que o Rochedo deixou de ter interesse
para a rota marítima imperial inglesa, mas é difícil acrescentar alguma coisa
que fortaleça o interesse nacional espanhol. Tanta inquietação ao mesmo tempo
não chega para fazer esquecer o caso de Olivença, que a Espanha detém
ilegalmente há gerações, e em relação à qual procedeu a toda a hispanização
possível. É todavia evidente que a relação temporal entre as alegadas ambições e
direitos, sem acrescentar o bem lembrado esquecimento do direito português, está
articulado com a difícil situação interna da circunstância política espanhola,
do partido que apoia o governo, e dos seus dirigentes mais destacados.
Digamos que estamos perante um igual recurso ao das Malvinas, porque as ilhas
Selvagens estavam à disposição no sentido de mobilizar o eleitorado espanhol em
termos de secundarizar a situação perigosa que alguns dirigentes e o partido
governamental enfrentam.
Embora se trate de um recurso antigo, e largamente experimentado ao longo da
história, por líderes em dificuldades, isso não pode levar ao convencimento de
que a artificialidade do recurso é suficiente para cobrir de nevoeiro a situação
política interna que chega para inquietar, esperamos que sem fundamento,
qualquer aparelho governamental.
O mundo, e sobretudo a Europa, tem já problemas suficientemente graves, e
desafios de difícil resposta, que chegam para ocupar os responsáveis pelo
interesse geral da União, dispensando os artifícios que cansam a diplomacia, não
iludem a realidade, nem diminuem a eventual gravidade dos incidentes que
deveriam ficar pela jurisdição interna. Foi difícil, e exigiu longa devoção e
diligência, modificar o perfil das relações seculares peninsulares.O que se pode e deve esperar é que ninguém se sinta autorizado a
deteriorá-las." Adriano Moreira , em Artigo de opinião , publicado no DN, em 8 de Outubro de 2013
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