Por se celebrar o Dia Internacional da Mulher , recuperamos uma longa e excelente conversa de Nelida Piñon, ( 1937- 2022), no Paiol Literário.
"A escritora
Nélida Piñon foi a convidada da edição de maio de 2009, da quarta temporada
do Paiol Literário — projeto desenvolvido pelo Rascunho em
parceria com o Sesi Paraná e a Fundação Cultural de Curitiba.
Nélida nasceu
no Rio de Janeiro, em 1937. Formada em jornalismo, ocupa a cadeira número 30 da
Academia Brasileira de Letras. Em mais de cem anos de existência da
instituição, foi a primeira mulher a integrar sua diretoria e a presidir a ABL.
Em 2005, foi a primeira escritora de língua portuguesa a receber o Prêmio
Príncipe de Astúrias (Espanha). É autora de cerca de 20 livros, entre os
quais Vozes do deserto, A casa da paixãoe A
república dos sonhos. Recentemente, lançou pela Record Coração
andarilho, uma obra com memórias de sua infância.
No dia 5 de
maio, no Teatro Paiol, em Curitiba, durante o bate-papo mediado pelo escritor e
jornalista José Castello, Nélida Piñon falou sobre sua infância no Brasil e na
Galícia, sua formação literária e seu amor pela oralidade e pelas diferenças
culturais, relembrou sua amizade com escritores como Philip Roth, John Updike,
William Styron e Clarice Lispector e discorreu sobre feminismo, engajamento
político e o papel da mulher na literatura.
• Uma
invenção humana
Vejo a literatura como um instrumento excepcional da nossa civilização. Ela
ajuda a esclarecer o mundo. Quem nós somos? Quem nós fomos? Lendo a Ilíada,
você pode imaginar quais foram os sentimentos de Aquiles ou de Príamo. Você se
pergunta: “Por que esse fervor pela narrativa?”. Porque o ser humano precisou
narrar, para que os fatos da vida, da poética do cotidiano, não desaparecessem.
Enquanto o ser humano forjava a sua civilização, dava combate aos deuses e
procurava entender em que caos estava imerso, ele contava histórias. Para que
nada se perdesse. Não havia bibliotecas. No caso de Homero, os aedos — e quase
podíamos intitulá-los os poetas da memória — memorizavam tudo para que os fatos
humanos não se perdessem. E, assim, a angústia em relação à apreensão da vida
real, o real humano, visível, intangível, esteve presente em todas as
civilizações. Nas nossas Américas, por exemplo, houve entre os incas uma
categoria social, a dos amautas, que tinha por finalidade única memorizar. Memorizar
para que os povos não se esquecessem das suas próprias histórias. Quer dizer, a
literatura não foi uma invenção dos escritores, gosto muito de enfatizar isso.
Foi uma invenção humana.
• Somos
singulares
Milhões de pessoas já leram Dom Quixote. Milhões, em diferentes
línguas. Mas é o mesmo livro para diferentes leitores. Isso prova que a
literatura dá visibilidade a quem somos, a nossos sentimentos mais secretos,
mais obscuros, mais desesperados, às esperanças mais condicionais do ser
humano. E a literatura conta histórias porque os sentimentos precisam de uma
história para que você se dê conta deles. Então, a literatura pensou em dar
conta de quem somos, dessa nossa complexidade extraordinária. Porque somos
seres fundamentalmente singulares. E, por isso, a literatura é singular.
• Leitores
sedutores
Se vocês tiverem o hábito de ler, vão ingressar em um mundo tão fascinante que,
de imediato, os fará se tornarem criaturas sedutoras. Porque a leitura também
nos dá uma condição erótica. Com as palavras na mão, você se torna uma pessoa
sedutora. Uma pessoa afásica tem que ter um rosto belíssimo para poder seduzir.
Já um feinho, ou uma feinha, se tiver o dom da palavra, se for capaz de imantar
platéias, pessoas ou amores com a palavra… Não é forçoso dizer que a leitura
nos obriga a abrir os olhos. Com ela, você vê o que não tinha visto até então,
você se torna muito mais crítico. No entanto, através da leitura, você vai
criando o seu conceito, o seu código de consciência. Eu, por exemplo, pude
entender o que era a minha consciência — mesmo que de forma precária — quando
li Crime e castigo, de Dostoievski. Foi um choque profundo na minha
vida. Então, quem somos nós sem a leitura, sem folhear a intimidade de um
livro? E essa é uma intimidade imensa, como a intimidade da cama, talvez. Ou
talvez não, pois a cama se divide, e o livro não. É só você e ele: o livro, os
ditames do livro, a imaginação do livro. Você voa enquanto o texto voa com
você.
“O que
salva a alma do texto é a sua conexão com a alma popular.”
• Coração
andarilho
Desde menina, eu sou eu. Sou um coração andarilho. Sempre fui uma grande
aventureira. Quando criança, meu ideal de vida era pular a janela e sair mundo
afora, sem jamais dormir uma segunda noite debaixo do mesmo teto. Uma vida
extraordinária. De certo modo, quis ser escritora atraída pela aventura. Eu era
leitora de Karl May — e de Monteiro Lobato, também —, e achava que a literatura
era escrita por alguém que vivera as aventuras que contava. Então, eu queria
viver aquelas experiências, aquele mesmo sentimento de aventura ao entrar numa
sala, numa casa, numa festa, queria ter a sensação de que ocorreria algo que
mudaria minha vida para sempre. Era uma disponibilidade extraordinária a que eu
tinha. Hoje, já não tenho mais isso, não. Não sinto nada. Entro e, se eu for
surpreendida, será uma graça do Espírito Santo.
• Tudo era
meu pai
Meu pai, Lino, me estimulou demais. Ele ficava perplexo diante daquela filha
que queria tanto e não falava o tanto que queria. E, para controlar essa minha
avidez, essa curiosidade insaciável, ele não me dava mesada. Era o único modo
que o coitadinho tinha para me controlar. No mais, eu era uma menina bem
educada, que foi crescendo, sempre desejosa de ser escritora, ainda que
ignorasse o sentido ético e estético da escritura. Eu não tinha noção alguma,
mas já fazia o meu jornalzinho, com minhas ilustraçõezinhas, e o vendia para o
meu pai — quer dizer, já tinha noção de direitos autorais (risos). E o
meu pai comprava cada exemplar. Tudo era meu pai.
• Hino à
invenção
Se vocês não acreditarem no que estão lendo, não haverá literatura possível.
Deve haver uma aliança entre o leitor e o texto que está sendo lido, digerido.
Quanto a isso, Karl May me causou uma impressão extraordinária. Ele era um
homem culto, na Alemanha do século 19, que nunca tinha ido aos Estados Unidos.
Portanto, não conhecia o Oeste americano. Mas criou dois grandes personagens,
um representando a velha Europa, Old Shatterhand, um herói do Oeste americano,
e Winnetou, um apache que encarnava a nobreza dos índios de lá. (…) Em certo
momento de uma história, Old Shatterhand pergunta: “Winnetou, onde estão os
assassinos? A quantas horas de nós, mais ou menos?”. E Winnetou solene, desce
do seu cavalo, deita-se, põe o ouvido no chão e fica ali por algum tempo.
Depois, se põe de pé e, com aquela voz de chefe, diz: “Estão distantes de nós
tantas horas”. E completa: “São tantos cavalos”. Winnetou chega até a definir
que cavalos seriam aqueles: garanhões, mustangues, etc. Mas o que mais me impressionou
— e agora nem sei mais se estou inventando isso — é que ele também disse o
seguinte a Old Shatterhand: “E a um dos assassinos falta o braço direito”. Como
faltava um braço ao assassino, seu cavalo não fazia pegadas tão profundas na
terra. E aquilo, para mim, era um hino à capacidade de inventar. Você pode
aceitar qualquer coisa, desde que você seja um aliado do texto. Tudo é possível
na criação, desde que haja talento e credibilidade.
• Galega e
brasileira
Percebi muito cedo que eu era uma mulher de duas culturas. Eu não tinha uma
cultura só. Desfrutava os benefícios de duas culturas próprias, com suas
respectivas miscigenações e idiossincrasias, com línguas distintas e
imaginários diferentes. Desde menina, me percebi habitante de uma casa
diferente. Porque uma menina que comia polvos com oito pernas não podia ser a
mesma que comia feijão com arroz. Minha imaginação era atada a um animal
pré-histórico que rastejava nas areias do oceano e que, para ser comido,
precisava antes levar uma surra no tanque. Aquilo, para mim, era perturbador,
mas eu o aceitei com naturalidade. Fui vivendo com o que o mundo me dava. Os
suspiros da minha avó eram muito delicados, talvez tivessem a nostalgia da distância
atlântica. Eu até disse, no meu discurso de admissão na Academia Brasileira de
Letras: “Advogo que sou uma brasileira recente”. Isso, até aquela época;
depois, eu já não achava tanto. Mas me senti, durante toda minha formação, uma
brasileira recente, o que foi muito importante para mim. Eu era uma cristã
nova, mas não tinha abjurado nenhuma fé. Eu estava construindo uma fé.
• As
diferenças
Estou sempre
viajando e me sinto bem no mundo. Não dou as costas ao lugar que me tem como
visita. Eu me sinto bem. Estou bem entre vocês. Se de repente houver algum
mal-entendido, pode haver alguma tensão, mas sei que tudo é contornável. E, se
não for contornável, lamento. Sou aguerrida na resistência, mas não sou uma
mulher que briga por razões que minha razão já superou. Tento ser cúmplice da
vida. Só posso reagir diante da violência, mas, diante das diferenças que
predominam entre nós, não reajo. Compreendo, absorvo e levo para casa o padrão
da diferença, para poder pensar sobre ela.
• A infância
na Galícia
Levamos para a Galícia baús, baús e mais baús com goiabada, marmelada, café,
sabonete. Tudo que não perecesse, nós levávamos. Chegamos lá em novembro, no
frio, naquela neblina. Fiquei horrorizada. Meu pai estimulava o meu afeto por
aquela nova raça, pelos nossos parentes. Ele dizia: “Olha a Fulana”. E era todo
mundo vestido de negro, umas mulheres sinistras que, quando me abraçavam,
usavam uma língua que eu não entendia, que achei truculenta, uma língua
ruidosa, cuja origem só depois fui entender e amar. Amei a suavidade da língua
galega, amei aquele país. Como amo profundamente, claro, a minha terra, o
Brasil. Tanto que, até hoje, não aceitei o passaporte da União Européia. Eu
quero o meu verdinho. Mas a Galícia foi fundamental à minha formação. Dilatou o
meu imaginário, o meu sentimento narrativo. Porque os galegos são grandes
narradores orais, além de grandes escritores. Quando narram, você tem a
sensação de que nenhuma história está autorizada a chegar ao seu final. A
história se prorroga. E é verdade: a grande história não termina. Acaso vocês
terminam de ler a Ilíada?
• Oralidade
Sou muito atraída pela fala do outro, pela oralidade, pela tradição da
oralidade. A oralidade está presente nas nossas opções estéticas, na nossa
maneira de escolher quase que moralmente um texto. Ela vem de longe, e dela
você extrai o material com o qual vai compor a sua história, o seu pensamento
literário, mas, evidentemente, através do que se chama linguagem. A oralidade
me comove muito. Sempre digo que nós, escritores, devemos muito àquelas pessoas
do povo que nos foram cedendo um material quase que ilícito, no melhor sentido,
para que pudéssemos escrever. São seres que abriram as veias de seus corpos
sociais para que pudéssemos escrever. É uma doação total. Tanto que as pessoas
tendem a dizer: “A minha história daria uma narrativa”. É certa ingenuidade,
mas uma ingenuidade generosa. (…) Eu homenageio esse sentimento da oralidade no
meu romance A república dos sonhos, em que eu forjo uma personagem
chamada Xan, um galego culto, modesto, um camponês que tinha como primeira
vocação contar histórias. Ele gostava de ter um círculo não de leitores, mas de
ouvintes, e, quando alguém mostrava certo desinteresse por sua história, ele
adicionava ingredientes novos ao que estava contando. E, se alguém demonstrasse
impaciência porque a estória se prolongasse em excesso, ele dizia: “Quem não
tem paciência não merece ouvir histórias”. Então, Xan é um personagem muito
admirado. As pessoas gostam muito dele. É o símbolo dessa oralidade, que é o
que costura o texto. O que salva a alma do texto é essa sua conexão com a alma
popular.
“Quando criança, meu ideal de vida era pular a janela e
sair mundo afora, sem jamais dormir uma segunda noite debaixo do mesmo teto.
Quis ser escritora atraída pela aventura.”
•
Mundo irreconhecível
Eu me interesso por tudo. E espero poder ser assim por muitos anos. Já disse a
um amigo, muito íntimo: “Se você sentir que minha cabeça não está a mesma, me
encerre em algum lugar”. E ele, sério, como se eu tivesse lhe delegado uma
missão: “Mas como é que nós vamos fazer?”. Não sei. Não me exponham a um mundo
que eu não reconheço mais.
•
Daniel e o anagrama
Primeiro, o meu avô Daniel ficou muito aborrecido. Era um homem de temperamento
muito forte e desejava que a sua netinha se chamasse Pilara. Nome horrível:
Pilara Piñon. Então, uma de minhas tias amadas, linda, o enfrentou: “O senhor
teve tantas filhas e nunca usou esse nome. Essa menina vai se chamar Nélida”.
(…) Anos depois, pouco antes de eu tomar posse na Academia, um jovem mineiro,
Tadeu, disse que seu sonho era me conhecer. Eu disse a ele: “Se o seu sonho é
esse, meu bem, é muito fácil realizá-lo. Venha até aqui”. Ele almoçou na minha
casa, me fez algumas perguntas e, depois, me escreveu: “Que coisa interessante,
essa sua família. Resolveram tudo com esse anagrama perfeito, Nélida Piñon”.
Aí, fui ver aquilo correndo. E era isso mesmo: Daniel e Nélida. (…) Esse avô,
Daniel, se apaixona por sua neta e a leva a todos os lugares. E me dizia para
olhar as fachadas arquitetônicas, ouvir o movimento do vento. Tudo ele me
ensinava. E me ensinava, muito, a comer: “Aprenda, sobretudo, a devolver
pratos. Não gostou, devolva!”. (…) Uma vez, eu estava na Hacienda de los
Morales, uma fazenda que, devagar, foi sendo incorporada pela expansão urbana
do México, uma fazenda linda, onde as pessoas fazem festas e jantares. Lá, uns
40 intelectuais mexicanos me ofereceram um almoço lindo. No final,
desenvolveu-se o que eles chamam de tertúlia, uma conversa informal, com
charutos, bebidas, conhaques e digestivos, e começaram a me fazer perguntas.
Uma delas veio de um senhor: “Cuéntame de seu avô, de quem você
fala com tanta devoção”. Comecei a contar: “Meu avô me ensinou até a preparar o
charuto dele. Eu o cortava e servia para ele com um conhaque, para que ele o
mergulhasse nele. Às vezes, depois de meio caminho já andado, fumado meio
charuto, ele o mergulhava num conhaque”. Aí, me ocorreu pela primeira vez o
seguinte: há aquele livro, Gigi, da escritora francesa Colette. Era
a história das grandes cortesãs de Paris, que vão educando filhas e sobrinhas
para que venham a ser grandes cortesãs também. Então, eu lhes disse: “De certo
modo, meu avô, sem saber, me ensinou a ser uma grande cortesã”.
•
Meus grandes mortos
A gratidão. Se eu posso ter uma virtude, é essa. Porque a gratidão e a lealdade
são muito importantes. Quando me telefonaram, de forma secreta, e me disseram
que eu seria a vencedora do Prêmio Príncipe de Astúrias, recebi a notícia com
muita serenidade, sabendo de que se tratava do segundo grande prêmio literário
internacional. Fui para o meu escritório, terminei uma coisa que tinha que
fazer e, depois, dediquei um tempo a relembrar meus grandes mortos. Não só da
família, que me deu tanto, mas também dos grandes amigos. Me lembrei até sabe
de quem? De Afrânio Coutinho, que foi muito querido, muito generoso comigo. Foi
assim: repassei a minha vida, agradecendo.
•
Amizade não é terremoto
Eu gostaria de entoar um hino à amizade. Acho que a amizade é um patrimônio
excepcional. Acho a amizade mais importante que o amor. Porque os amores se
sucedem. Infelizmente, o amor não é eterno — mas a amizade pode ser. A amizade
tem certos desprendimentos que o amor não tem. Na amizade, não há interesse na
carne. E a carne é muito revolucionária e perturbadora. O desejo que permeia a
relação amorosa é uma coisa de você não saber como se situar no mundo. É um
terremoto. E a amizade não é um terremoto. Ela pode ser serena e intensa, mas,
de algum modo, lhe oferece estabilidade. É uma aposta que você faz no outro,
sem maiores interesses. Não está em pauta o dinheiro, não está em pauta a
satisfação sexual, a procriação, nada. Sempre acreditei na amizade. E quis a
vida que, desde muito cedo, fui conhecendo pessoas fascinantes. Me dei muito
com grandes cantoras. Conheci Maria Callas. E Renata Tebaldi tinha muito afeto
por mim. Cheguei a pertencer a um grupo — olhem só as veleidades da juventude —
de apaixonados por ópera.
•
Ou pianista ou escritora
Eu nunca quis estudar nada, só quis ser escritora. Inclusive, uma vez, eu
estava em uma mesa, fazendo assim, como se tocasse piano, e falei: “Minha mãe,
quero tocar piano”. E ela perguntou: “Minha filha, você quer ser escritora ou
pianista?”. Porque ela já tinha um fracasso na família, minha tia Celina, que
eu quero muito bem. Ela tinha feito o curso completo na Escola Nacional de
Música, mas não tocava mais nada. Então, minha mãe disse: “Você escolhe: ou
pianista ou escritora”. E eu só queria ser escritora. Mas até hoje tenho uma
coleção ótima de balé, de ópera. E escrevia cartas para os grandes críticos de
balé. Tudo isso foi me preparando para a literatura. Eu não me aproximava de
nenhum escritor. Só fui conhecer alguns escritores de perto em 1960. A própria
Clarice Lispector. Fui levada a casa dela sem saber. E Clarice, com aquele
temperamento especial, aceitou me dar isto de presente: a oportunidade de
conhecê-la.
“Em um país sem literatura, não dá para vender nem uma
geladeira. Para ser original, uma geladeira tem que ter uma literatura atrás
dela.”
•
Clarice
Um ou dois anos antes de conhecer Clarice, comprei na Kopenhagen um carrinho
com ovinhos de chocolate e escrevi no cartão: “Foi então que aconteceu. De pura
afobação a galinha pôs um ovo”. Não assinei e deixei o carrinho na casa dela,
porque não queria, não desejava aceitar a condição de fã. Queria, um dia, ser
amiga de Clarice, e em igualdade de condições, com o devido respeito. E isso
aconteceu. Foi uma amizade de 18 anos, que só terminou com a morte dela. Fiquei
com ela, no hospital, os últimos 40 dias, segurando sua mão esquerda, e a Olga
Borelli, sua mão direita. Posso falar sobre isso agora. Antes, não falava sobre
Clarice. Me dava muita dor.
•
Três milionários
Conheci Philip Roth, William Styron e John Updike. Philip Roth me levou para
jantar e fez um vaticínio interessantíssimo. Na época, ele era uma promessa,
mas ainda não tinha essa dimensão, essa grandeza de hoje. Ainda não havia
escrito O complexo de Portnoy, e sim Adeus, Columbus.
Naquele momento, quem estava fazendo um grande sucesso — e que depois eu também
conheci, mas muito pouco — era Saul Bellow, com Herzog, o primeiro romance
de alta categoria que também se tornaria um best-seller. Isso era
uma novidade. E estávamos, Roth e eu, conversando num restaurante, quando ele
me disse: “De agora em diante, será assim. Os próximos a fazerem um milhão de
dólares serão John Updike, William Styron e eu”. E todos esses três, em xis
anos, fizeram um milhão de dólares, se tornaram best-sellers.
Styron, com As confissões de Nat Turner; Roth, com O
complexo de Portnoy; e Updike, com Casais trocados.
•
Letras e armas
Conheci muitos escritores, enfim. Companheiros de letras, companheiros de
armas. E eles devem ter imaginado que eu seria — desculpem dizer isso a vocês —
digna dessa amizade. Não detectaram em mim oportunismo, isso é muito importante
que se diga, mas, sim, igualdade de condições, de trabalho. Embora eu fosse,
como gosto de dizer, uma brasileirinha. O Brasil ainda é muito desconhecido,
quanto mais naquela época. Então, eu sempre esperava por oportunidades. E elas
aconteceram. Eles foram mantendo essa nossa amizade, um convívio muito bonito e
muito generoso da parte deles, e acho que da minha parte também, porque eu lhes
levei o espírito de uma mulher independente, que buscava também o
reconhecimento da dignidade literária de uma mulher. Eles sabiam que eu era
feminista, sabiam também que eu era alguém que não avançava, que não ia além de
minhas medidas, e tudo isso foi beneficiando a nossa amizade.
•
Rede de ilusão
Eu não queria ser só uma nacionalista exagerada. Queria ser uma brasileira,
assim como eu sou. Queria saber tudo do Brasil, queria me formar. Levem em
conta que eu era uma imigrante de origem. Isso eu tive muito presente: eu era
recente no Brasil e me cabia descobrir as contrafacções brasileiras. Essa
costura me ajudou a pensar o país. Lembro de haver dito, uma vez, ao meu
querido Ignácio de Loyola Brandão, um homem combatente: “Virão tempos negros,
Ignácio”. Sabíamos que a democracia estava vindo, e ele me perguntou: “Mas por
que você diz isso?”. E eu: “Porque fomos amigos, íntimos, generosos uns com os
outros, mas até agora. Não seremos mais, vai haver uma grande batalha pelo
poder literário e, se não tomarmos cuidado, vamos cair nessa armadilha. Além do
mais, a prática democrática virá com falhas imensas, então temos que estar
muito atentos”. Então, tudo isso eu vivi atenta. Mas acho que fomos caindo numa
rede de ilusão, achando que o mundo estava resolvido. As próprias mulheres,
hoje em dia, dispensam o feminismo. Como se fosse possível dispensar um
movimento ainda em pauta.
•
Geladeiras e literaturas
Como é que podemos ser um país que ainda tem não sei quantos milhões de
analfabetos ou de praticamente analfabetos, alfabetizados funcionais? É um país
ainda muito marginalizado. Como é que podemos ser prudentes nos nossos anseios
libertários? Ficando na questão do escritor, o escritor é ainda marginalizado.
Nós sustentamos a obra literária, nós damos ao Brasil, à custa de nosso
esforço, de nosso tempo e de nosso dinheiro, uma literatura que é um patrimônio
concreto, e não temos nenhuma facilidade. Cinqüenta, sessenta anos depois da
nossa morte, nossos livrinhos caem em domínio público. Quer dizer, passam a ser
domínio da literatura brasileira. E, em um país sem literatura, não dá para
vender nem uma geladeira. Para ser original, uma geladeira tem que ter uma
literatura atrás dela. (…) Então, gostaria dizer que os novos discursos devem
ser retomados levando-se em conta o ecossistema, a questão da água, a questão
ambiental e a dos animais, que hoje em dia é um dos temas que mais me atraem.
Acho que o sistema da linguagem está perdendo substância. É uma sangria léxica,
tudo isso, a escola brasileira, que é da pior categoria, a escola pública. Há
debates que devem ser feitos e levados adiante.
•
Estética adocicada?
Se você for analisar, o trato que a crítica ensaística e que o leitor dedicam à
mulher é inferior ao que dedicam ao homem. Ao homem, basta escrever um bom
romance para ser aprovado, às vezes um romance médio. Uma mulher, para ser tida
como grande escritora, precisa fazer uma grande obra e, mesmo assim, não terá
tantos leitores quanto os homens. É verdade. Não há na sociedade brasileira um
interesse profundo pela produção da mulher. Como se o que a mulher pensa fosse
alguma coisa que pudesse ser naturalmente desqualificada, ou como se fosse uma
estética edulcorante, adocicada.
“Eu sou homem, eu sou mulher, eu sou bicho, eu sou vegetal,
eu sou mineral. Não sendo tudo isso ao mesmo tempo, eu seria um ser pela
metade.”
•
Um ser total
Eu, por exemplo, me rebelo. Quer dizer, eu me rebelo, eu me oponho, porque sei
que faço uma literatura de primeira. Não é por vaidade que digo isso, é puro
reconhecimento prático. Mas quando digo que sou uma feminista, não quero dizer
que meu livro seja feminista. Isso é outra coisa. Agora, vocês podem me
perguntar o que é que eu sou quando escrevo. Eu sou um ser total, sou alguém
que acredita naquela vocação protéica de Proteu, não das proteínas. Eu sou
homem, eu sou mulher, eu sou bicho, eu sou vegetal, eu sou mineral. Não sendo
tudo isso ao mesmo tempo, eu seria um ser pela metade. Vejam, por exemplo,
Flaubert, e a grandeza de Madame Bovary. Ele diz: “Eu sou Ema”.
Quer dizer, é uma alternância de carnes, de sexos, de espíritos.
•
Novidades arqueológicas
A minha posição é a de quem olha o horizonte humano e recolhe o que há de
disponível. Vou fazer a grande filtragem através da história que conto e
através da escritura, da coisa mais mágica que é a linguagem. A linguagem é o
grande ditame. Agora você, sendo mulher e, portanto, alguém egresso de um mundo
obscuro, de um mundo marginalizado, de um mundo doméstico sem maiores
perspectivas criadoras, e sendo também alguém que chegou muito recentemente ao
mundo da cultura — porque essa é a verdade, até bem pouco tempo atrás, muitas
mulheres eram analfabetas —; sendo tudo isso, você ganha na sua psique, porque
toda psique humana é arqueológica. Ao longo dos milênios, a mulher esteve
presente em todos os instantes da história, embora posta de lado. Mas ela
recolhia pedaços, e com eles, com essas sobras, precisou intensificar a
invenção para completar o que lhe faltava. Então, tendo esses resíduos em sua
memória, e que são excepcionais, ela também guarda nas suas idiossincrasias, em
seu repertório pessoal, aquela noção de que foi segregada. E esse elemento é
muito interessante para a ficção. Porque você vai colocá-lo dentro do texto.
Cada ser enriquece seu texto com sua experiência pessoal, com a experiência da
sua língua, com a experiência do seu país, com a experiência do seu tempo. Tudo
isso faz com que o seu texto se distinga. E o texto da mulher pode ter, em suas
entranhas, essas novidades arqueológicas."
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