sábado, 23 de março de 2024

A Promessa

As fotos do ‘Álbum de Auschwitz’ mostram um dos momentos mais atrozes da história
da humanidade, o processo de selecção na plataforma de Birkenau, onde os deportados,
 em apenas alguns segundos, eram seleccionados por médicos das SS para viver ou morrer
imediatamente..Nesta imagem, os judeus  preparam-se para o processo de seleção.  
YAD VASHEM

A Promessa
por Romain Gary
Capítulo XIV
"O meu pai tinha abandonado a minha mãe pouco depois de eu nascer, e cada vez que eu mencionava o seu nome , o que raramente fazia, a minha mãe e Aniela trocavam um olhar rápido e o assunto da conversa era sem demora desviado. Bem sabia eu, no entanto, por bocados de conversa surpreendidos uma vez ou outra, que havia no caso qualquer coisa de incómodo, de doloroso até e não tardei a compreender que era melhor evitar falar no assunto.
Eu sabia que o homem que me dera o seu  nome tinha mulher, filhos e que viajava muito, ia à América, e encontrei-o algumas vezes. Tinha um aspecto agradável, grandes olhos bondosos e mãos muito cuidadas; comigo era sempre amável e tímido e quando me fitava, tristemente e creio que com certo censura, eu baixava os olhos e tinha, não sei porquê, a impressão de que lhe houvera pregado uma partida.
Só depois da sua morte ele entrou verdadeiramente na minha vida e duma maneira que nunca esquecerei. Sabia bem que fora morto durante a guerra numa câmara de gás, executado como judeu, com mulher e filhos, que já tinham, creio eu, quinze e dezasseis anos de idade. Mas foi somente em 1956 que soube um pormenor particularmente revoltante do seu fim trágico. Vindo da Bolívia, onde era adido comercial, dirigia-me nessa altura a Paris para receber o Prémio Goncourt por um romance que acabara de publicar, As Raízes do Céu. Entre as cartas que recebi por essa ocasião houve uma que me dava pormenores sobre a morte daquele que eu tão pouco conhecera.
Não tinha morrido na câmara de gás como me haviam dito. Morrera de medo a caminho do suplício , a alguns passos da entrada.
A pessoa que me escrevia tinha sido encarregada de receber à porta os condenados - não sei que nome lhe aplicar, nem qual o título oficial que lhe davam. 
Na carta , sem dúvida para me ser agradável, dizia-me que o meu pai não chegara atá à câmara de gás e que tinha caído morto de pavor antes de entrar.
Fiquei durante muito tempo com a carta na mão; saí em seguida pela escada da NRF, apoiei-me no corrimão e ali fiquei, não sei por quanto tempo, com a farda talhada nos alfaiates de Londres, o meu título de adido comercial da França, a minha Cruz da Libertação, a roseta da Legião de Honra e o meu Prémio Goncourt.
Tive sorte : Albert Camus passou nesse momento e, vendo que me sentia indisposto, levou-me para o seu gabinete.
O homem que morrera daquela forma era um estrangeiro para mim, mas desde esse dia passou a ser meu pai e para sempre.
Continuei a recitar as fábulas de La Fontaine, os poemas de Déroulède e de Béranger e a ler uma obra intitulada Cenas edificantes da vida dos grandes homens, grosso volume de capa azul ornado duma gravura dourada representando o naufrágio de Paulo e Virgínia. A minha mãe adorava a história de Paulo e Virgínia, que ela achava particularmente exemplar. Relia-me muitas vezes a emocionante passagem em que Virgínia prefere morrer afogada a ter de se despir. A minha mãe fungava de satisfação sempre que acabava esta leitura. Eu escutava com atenção, mas era já cético a tal respeito. Convencia-me de que Paulo não tinha sabido 
encaminhar as coisas.
Para me ensinar a manter a minha categoria com dignidade fui também convidado a estudar um grosso volume intitulado  Vidas dos franceses ilustres;  a minha mãe lia-me alguns passos em voz alta e, depois de ter evocado um episódio admirável das vidas de Pasteur, Joana  d'Arca e Rolando de Roncesvales, lançava-me um demorado olhar cheio de esperança e de ternura, com o livro nos joelhos.  Só a vi revoltar-se uma vez, vindo à superfície a sua alma russa ante as correcções inesperadas que os autores faiam á História. Eles descreviam , nomeadamente,  a batalha de Borodino como uma vitória francesa, e a minha mãe, depois de ter lido este parágrafo , ficou um momento  perturbada e disse a seguir,  fechando o volume , num tom escandalizado:
- Não é verdade. Borondino foi uma grande vitória russa. É preciso não exagerar."
Romain Gary, in  A Promessa, Livros do Brasil, Novembro de 2019, pp.90-92
Romain Gary, (1914-1980)
Sobre o Autor:
"Romain Gary nasceu em 1914 em Vilnius, na Lituânia (então Polónia). Judeu de origem russa, emigrou com a sua mãe para Nice em 1928. Em 1940 junta-se ao general de Gaulle e às forças livres francesas em Londres e combate como navegador da esquadrilha «Lorraine» até ao final da guerra. Ferido, recebe a condecoração suprema dos combatentes franceses, Compagnon de la Libération e foi um dos poucos sobreviventes dos duzentos homens da esquadrilha. O êxito dos seus primeiros romances, Educação Europeia e As Raízes do Céu (Prémio Goncourt 1956) tornaram-no imediatamente um escritor famoso em todo o mundo. Ocupou vários postos diplomáticos na Europa e nos EUA. Em 1975, escrevendo sob o pseudónimo Émile Ajar, ganhou de novo o Prémio Goncourt (caso «impossível» na história do prémio) com Uma Vida à Sua Frente. Gary suicidou-se em 1980, pouco mais de um ano depois do suicídio da sua ex-mulher Jean Seberg. Deixou escrito um pequeno opúsculo intitulado Vida e Morte de Émile Ajar, texto extraordinário onde revelou a «mistificação» Ajar."
Sobre o livro:
"No momento em que Romain Gary se preparava para partir para a frente de batalha da Segunda Guerra Mundial, abraçou a mãe e assinou consigo mesmo um compromisso: iria fazer-lhe justiça, daria um sentido à incansável luta solitária daquela mulher para garantir ao filho apenas e só o melhor, e regressaria um dia a casa coberto de louros, «depois de ter vitoriosamente disputado a posse do mundo àqueles cujo potencial de crueldade aprendera a conhecer desde os primeiros passos». Este é o seu testemunho de vida, e é também uma sentida declaração de amor filial. Das recordações da infância em Vilnius à viagem para a Riviera francesa, dos primeiros ensaios na escrita à sua aventura de combate, A Promessa é um emotivo romance de memórias de um dos grandes autores do século XX, que se tornaria um marco da literatura francesa do pós-guerra. Foi vertido para português pela mão de Augusto Abelaira."

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