“O poeta Nuno Júdice morreu este domingo aos 74 anos, vítima de doença. Estava internado no Hospital da Luz, em Lisboa.
Nuno Júdice nasceu na Mexilhoeira Grande, Município de Portimão, no distrito de Faro, em 1949. Poeta, ensaísta e ficcionista, formou-se em Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Lisboa. Era Professor Jubilado da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde se doutorou em 1989 com uma tese sobre Literatura Medieval O espaço do conto no texto medieval (Vega, 1991). Publicou antologias da Poesia do Futurismo português e da poesia de Guerra Junqueiro e fez as edições de Novela despropositada de Frei Simão António de Santa Catarina (Regra do Jogo, 1997), dos Sonetos de Antero de Quental (Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1994), do Cancioneiro de D. Dinis (Teorema, 1998) e dos Infortúnios trágicos da Constante Florinda de Gaspar Pires Rebelo (Teorema, 2005). Teve uma colaboração regular em jornais e revistas com crítica literária e crónicas. No campo do ensaio sobre temas de poesia, ficção e teoria literária publicou A era do Orpheu (Teorema, 1986), O espaço do conto no texto medieval (Vega, 1991), O processo poético (Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1992), Viagem por um século de literatura portuguesa (Relógio d’Água, 1997), As máscaras do poema (Aríon, 1998), A viagem das palavras (Colibri, 2005), O fenómeno narrativo (Colibri, 2005), A certidão das histórias (Apenas Livros, 2006). Em Jjaneiro de 2009 assumiu as funções de director da revista Colóquio-Letras da Fundação Calouste Gulbenkian.
Foi conselheiro cultural da Embaixada de Portugal em Paris (1997-2004) e director do Instituto Camões na capital francesa.
Organizou a Semana Europeia da Poesia, no âmbito da Lisboa’94 – Capital Europeia da Cultura.
Nuno Júdice foi um dos poetas portugueses mais publicados e traduzidos, tendo a sua obra merecido reconhecimento internacional com vários prémios, dos quais se destaca o Prémio Ibero-Americano Rainha Sofia atribuído em 2013. Em 2018, foi galardoado com o prémio PEN do Clube Galego e em 2021, foi distinguido com o Grande Prémio de Poesia Maria Amália Vaz de Carvalho da Associação Portuguesa de Escritores (APE) pela publicação do livro “Regresso a um cenário campestre”, editado em 2020. Foi finalista do Prémio Europeu de Literatura pela obra “Meditação sobre ruínas” que em 1994 já tinha sido distinguida também pela APE.
Em 2022, foi publicado o volume “50 anos de poesia (1972-2022), que reúne o seu trabalho poético durante meio século. "
A vida
A vida, as suas perdas e os seus
ganhos, a sua
mais que perfeita imprecisão, os dias que contam
quando não se espera, o atraso na preocupação
dos teus olhos, e as nuvens que caíram
mais depressa, nessa tarde, o círculo das relações
a abrir-se para dentro e para fora
dos sentidos que nada têm a ver com círculos,
quadrados, rectângulos, nas linhas
rectas e paralelas que se cruzam com as
linhas da mão;
a vida que traz consigo as emoções e os acasos,
a luz inexorável das profecias que nunca se realizaram
e dos encontros que sempre se soube que
se iriam dar, mesmo que nunca se soubesse com
quem e onde, nem quando; essa vida que leva consigo
o rosto sonhado numa hesitação de madrugada,
sob a luz indecisa que apenas mostra
as paredes nuas, de manchas húmidas
no gesso da memória;
a vida feita dos seus
corpos obscuros e das suas palavras
próximas.
Nuno Júdice, in Teoria Geral do Sentimento, Quetzal Editores
Fragmentos
1
Aceita o transitório; nada do que
é definitivo, dura, te pode atingir
2
Algo de visível perpassa
nos limites do ser.
3
De noite, o vento partiu
um dos vidros das traseiras.
4
Só o ruído da noite sobrevive
à luz e ao furor matinais.
5
(Se aquelas nuvens, no horizonte,
chegassem até mim…)
6
O fragmento, porém, exprime
o estilhaçar da intensidade.
7
No último fragmento, fixa
o efémero e repousa.
Nuno Júdice, in Meditação sobre Ruínas, Quetzal Editores 1999
Carta ( Esboço)
Lembro-me agora que tenho de marcar um
encontro contigo, num sítio em que ambos
nos possamos falar, de facto, sem que nenhuma
das ocorrências da vida venha
interferir no que temos para nos dizer. Muitas
vezes me lembrei de que esse sítio podia
ser, até, um lugar sem nada de especial,
como um canto de café, em frente de um espelho
que poderia servir de pretexto
para reflectir a alma, a impressão da tarde,
o último estertor do dia antes de nos despedirmos,
quando é preciso encontrar uma fórmula que
disfarce o que, afinal, não conseguimos dizer. É
que o amor nem sempre é uma palavra de uso,
aquela que permite a passagem à comunicação ;
mais exacta de dois seres, a não ser que nos fale,
de súbito, o sentido da despedida, e que cada um de nós
leve, consigo, o outro, deixando atrás de si o próprio
ser, como se uma troca de almas fosse possível
neste mundo. Então, é natural que voltes atrás e
me peças: «Vem comigo!», e devo dizer-te que muitas
vezes pensei em fazer isso mesmo, mas era tarde,
isto é, a porta tinha-se fechado até outro
dia, que é aquele que acaba por nunca chegar, e então
as palavras caem no vazio, como se nunca tivessem
sido pensadas. No entanto, ao escrever-te para marcar
um encontro contigo, sei que é irremediável o que temos
para dizer um ao outro: a confissão mais exacta, que
é também a mais absurda, de um sentimento; e, por
trás disso, a certeza de que o mundo há-de ser outro no dia
seguinte, como se o amor, de facto, pudesse mudar as cores
do céu, do mar, da terra, e do próprio dia em que nos vamos
encontrar, que há-de ser um dia azul, de verão, em que
o vento poderá soprar do norte, como se fosse daí
que viessem, nesta altura, as coisas mais precisas,
que são as nossas: o verde das folhas e o amarelo
das pétalas, o vermelho do sol e o branco dos muros.
Nuno Júdice, in Poesia Reunida, Dom Quixote 2000
A Terra do Nunca
Se eu fosse para a terra do nunca,
teria tudo o que quisesse numa cama de nada:
os sonhos que ninguém teve quando
o sol se punha de manhã;
a rapariga que cantava num canteiro
de flores vivas;
a água que sabia a vinho na boca
de todos os bêbedos.
Iria de bicicleta sem ter de pedalar,
numa estrada de nuvens.
E quando chegasse ao céu pisaria
as estrelas caídas num chão de nebulosas.
A terra do nunca é onde nunca
chegaria se eu fosse para a terra do nunca.
E é por isso que a apanho do chão,
e a meto em sacos de terra do nunca.
Um dia, quando alguém me pedir a terra do nunca,
despejarei todos os sacos à sua porta.
E a rapariga que cantava sairá da terra
com um canteiro de flores vivas.
E os bêbedos encherão os copos
com a água que sabia a vinho.
Na terra do nunca, com o sol a pôr-se
quando nasce o dia.
Nuno Júdice, in Poemas [de As Coisas Mais Simples],Dom Quixote , Outubro de 2006.
Silêncio
Pego num pedaço de silêncio. Parto-o
ao meio,
e vejo saírem de dentro dele as palavras que
ficaram por dizer. Umas, meto-as num frasco
com o álcool da memória, para que se
transformem num licor de remorso; outras,
guardo-as na cabeça para as dizer, um dia,
a quem me perguntar o que significam.
Mas o silêncio de onde as palavras sairam
volta a espalhar-se sobre elas. Bebo o licor
do remorso; e tiro da cabeça as outras palavras
que lá ficaram, até o ruído desaparecer, e só
o silêncio ficar, inteiro, sem nada por dentro.
Nuno Júdice, in A matéria do poema. Dom Quixote. 2008
mais que perfeita imprecisão, os dias que contam
quando não se espera, o atraso na preocupação
dos teus olhos, e as nuvens que caíram
mais depressa, nessa tarde, o círculo das relações
a abrir-se para dentro e para fora
dos sentidos que nada têm a ver com círculos,
quadrados, rectângulos, nas linhas
rectas e paralelas que se cruzam com as
linhas da mão;
a vida que traz consigo as emoções e os acasos,
a luz inexorável das profecias que nunca se realizaram
e dos encontros que sempre se soube que
se iriam dar, mesmo que nunca se soubesse com
quem e onde, nem quando; essa vida que leva consigo
o rosto sonhado numa hesitação de madrugada,
sob a luz indecisa que apenas mostra
as paredes nuas, de manchas húmidas
no gesso da memória;
a vida feita dos seus
corpos obscuros e das suas palavras
próximas.
Nuno Júdice, in Teoria Geral do Sentimento, Quetzal Editores
Fragmentos
1
Aceita o transitório; nada do que
é definitivo, dura, te pode atingir
2
Algo de visível perpassa
nos limites do ser.
3
De noite, o vento partiu
um dos vidros das traseiras.
4
Só o ruído da noite sobrevive
à luz e ao furor matinais.
5
(Se aquelas nuvens, no horizonte,
chegassem até mim…)
6
O fragmento, porém, exprime
o estilhaçar da intensidade.
7
No último fragmento, fixa
o efémero e repousa.
Nuno Júdice, in Meditação sobre Ruínas, Quetzal Editores 1999
Carta ( Esboço)
encontro contigo, num sítio em que ambos
nos possamos falar, de facto, sem que nenhuma
das ocorrências da vida venha
interferir no que temos para nos dizer. Muitas
vezes me lembrei de que esse sítio podia
ser, até, um lugar sem nada de especial,
como um canto de café, em frente de um espelho
que poderia servir de pretexto
para reflectir a alma, a impressão da tarde,
o último estertor do dia antes de nos despedirmos,
quando é preciso encontrar uma fórmula que
disfarce o que, afinal, não conseguimos dizer. É
que o amor nem sempre é uma palavra de uso,
aquela que permite a passagem à comunicação ;
mais exacta de dois seres, a não ser que nos fale,
de súbito, o sentido da despedida, e que cada um de nós
leve, consigo, o outro, deixando atrás de si o próprio
ser, como se uma troca de almas fosse possível
neste mundo. Então, é natural que voltes atrás e
me peças: «Vem comigo!», e devo dizer-te que muitas
vezes pensei em fazer isso mesmo, mas era tarde,
isto é, a porta tinha-se fechado até outro
dia, que é aquele que acaba por nunca chegar, e então
as palavras caem no vazio, como se nunca tivessem
sido pensadas. No entanto, ao escrever-te para marcar
um encontro contigo, sei que é irremediável o que temos
para dizer um ao outro: a confissão mais exacta, que
é também a mais absurda, de um sentimento; e, por
trás disso, a certeza de que o mundo há-de ser outro no dia
seguinte, como se o amor, de facto, pudesse mudar as cores
do céu, do mar, da terra, e do próprio dia em que nos vamos
encontrar, que há-de ser um dia azul, de verão, em que
o vento poderá soprar do norte, como se fosse daí
que viessem, nesta altura, as coisas mais precisas,
que são as nossas: o verde das folhas e o amarelo
das pétalas, o vermelho do sol e o branco dos muros.
Nuno Júdice, in Poesia Reunida, Dom Quixote 2000
A Terra do Nunca
teria tudo o que quisesse numa cama de nada:
os sonhos que ninguém teve quando
o sol se punha de manhã;
a rapariga que cantava num canteiro
de flores vivas;
a água que sabia a vinho na boca
de todos os bêbedos.
Iria de bicicleta sem ter de pedalar,
numa estrada de nuvens.
E quando chegasse ao céu pisaria
as estrelas caídas num chão de nebulosas.
A terra do nunca é onde nunca
chegaria se eu fosse para a terra do nunca.
E é por isso que a apanho do chão,
e a meto em sacos de terra do nunca.
Um dia, quando alguém me pedir a terra do nunca,
despejarei todos os sacos à sua porta.
E a rapariga que cantava sairá da terra
com um canteiro de flores vivas.
E os bêbedos encherão os copos
com a água que sabia a vinho.
Na terra do nunca, com o sol a pôr-se
quando nasce o dia.
Nuno Júdice, in Poemas [de As Coisas Mais Simples],Dom Quixote , Outubro de 2006.
Silêncio
e vejo saírem de dentro dele as palavras que
ficaram por dizer. Umas, meto-as num frasco
com o álcool da memória, para que se
transformem num licor de remorso; outras,
guardo-as na cabeça para as dizer, um dia,
a quem me perguntar o que significam.
Mas o silêncio de onde as palavras sairam
volta a espalhar-se sobre elas. Bebo o licor
do remorso; e tiro da cabeça as outras palavras
que lá ficaram, até o ruído desaparecer, e só
o silêncio ficar, inteiro, sem nada por dentro.
Nuno Júdice, in A matéria do poema. Dom Quixote. 2008
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