quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

QUOD NON FECIT

Mona Lisa, de Leonardo da Vinci
QUOD NON FECIT
por Eugénio Lisboa
“Há gente que me persegue, atirando-me à cara aquilo que não sou e devia ser, aquilo que não fiz e devia ter feito, as ajudas que devia ter dado e não dei e por aí fora, interminavelmente. Que o Saramago ganhou o Nobel e eu não, que o Saramago casou com a Pilar e eu não, que ele tem uma Fundação e eu não, que ele se solidarizou com a Natália Correia e eu não. Tudo verdade, tudo coisas que doem a mais não poder, mas, deixem-me que confesse o que realmente me rasga por dentro: é que tudo isso não passa de pecadilhos e o que eu realmente cometi foram pecados magnos, horríveis pecados de omissão. Verdadeiras calamidades de repercussões galácticas. Com a alma a sangrar, dou exemplos. Não fui eu quem ganhou a batalha de Ourique. Não fui eu quem conquistou Lisboa aos mouros. Não fui eu quem obteve a independência de Portugal, nem sequer fui o Papa que a reconheceu. Estive sempre ausente disso tudo, recolhidinho numa aconchegada aurea mediocritas. Não matei o Conde Andeiro nem contribuí para a vitória em Aljubarrota: nem sequer ajudei a transportar as setas dos archeiros ingleses que nos vieram ajudar. Não dei uma mãozinha à Padeira de Aljubarrota, deixando a desgraçada, sozinha, a malhar nos espanhóis. Não matei o Duque de Viseu, deixando o trabalho sujo para El-Rei D. João II. Não participei na conquista de Ceuta nem fui capaz de resgatar D. Fernando, o Infante Santo, nem sequer tentei fazer o seu resgate, deixando-o a apodrecer em Marrocos. Que de coisas eu não fiz! Não descobri o caminho marítimo para a Índia e muito menos topei o Brasil. Não me encontrava em nenhuma das naus com que Fernão de Magalhães deu a volta ao mundo. Não escrevi OS LUSÍADAS! Nem sequer soprei umas rimas ao ouvido do Luís Vaz. O Padre António Vieira nem sequer se dignou olhar para mim, quanto mais pedir-me ajuda. A lei da gravitação universal passou bem sem mim. O teorema de Pitágoras e o teorema de Fermat passaram-me ao lado. Einstein nunca me perguntou o que eu achava da teoria da relatividade, aviando-se sozinho com ela, sem nunca me ter pedido colaboração. Nada tive que ver com a teoria dos quanta, também os antibióticos não tendo sido coisa da minha invenção. A vacina não foi por mim concebida! Não fui o primeiro homem a chegar à Lua. O COURAÇADO POTEMKINE ou A ODISSEIA NO ESPAÇO foram filmes que não realizei. O mais que consegui foi um autógrafo de Kubrick, num livro que lhe foi dedicado.
Não dei sequer uma dica para a 9ª Sinfonia nem para o Quinteto para clarinete, K 581, de Mozart, e nunca pintei a MONA LISA. Rodin nunca me pediu emprestado um escopro, para esculpir O PENSADOR, e Neruda escreveu a ODE AO GATO, sem me pedir que lhe ajustasse um único verso. E tenho quase a certeza de que não serei o primeiro homem a aterrar em Neptuno. A lista está longe de estar completa. Além disso, estas listas de coisas não conseguidas têm horror ao vazio e estão sempre a encher-se de omissões novas. Resta-me uma pequena consolação: o que se passa comigo passa-se com toda a gente, incluindo os que me acusam de não ter feito isto ou aquilo. Também eles não fizeram uma infernal data de coisas. É a vida, como costumava dizer o muito estimável Guterres.”
Eugénio Lisboa, 11.01.2024

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