Lembrança de Natália Correia
por Eugénio Lisboa
“Contactei,
pessoalmente, Natália Correia, por duas vezes, além de a ter lido sempre, com
admiração e quase fascínio. Era uma personagem inesquecível: fisicamente muito
atraente ou até, nos seus tempos áureos, deslumbrante, destemida até dizer
chega, livre, afrontosamente, em tempos de ditadura, a Natália envergonhava,
com a sua liberdade livre, o português médio, que se encolhia, amedrontadiço e
conformista, perante os ditames estúpidos e caseiros do Estado Novo.
Antes de a conhecer pessoalmente, ela esteve envolvida na minha vida, de modo breve e sem grandes consequências. Tratava-se da publicação, pela já falida editora ARCÁDIA, do meu livro JOSÉ RÉGIO – A OBRA E O HOMEM. O livro achava-se ali, patinhando na lama, sem conseguir arrancar para estrada de chão mais sólido. Tendo a Natália ido dirigir aquela outrora prestigiosa editora, por um período muito breve, ainda tentou desassossegar a pasmaceira em que jazia o meu manuscrito. Em vão. Pouco se tendo a Natália demorado naquele nicho moribundo, a minha aprofundada glosa sobre o Régio regressou ao seu sono hibernal, até que foi, inesperada e galhardamente, resgatada do oblívio, por um novo editor, Jorge Martins, que, de Lisboa, enviou a este desconhecido dele, tido e achado, nessa altura, numa Lourenço Marques onde o tiroteio crepitava, uma carta salvífica e um novo contrato mais decente do que o anterior… Estes milagres acontecem e até nos tornam momentaneamente surdos para os decibéis da metralha. Jorge Martins é hoje um dos meus melhores amigos e um valor que muito estimo e admiro, tendo sido editor, entre outros, de Vergílio Ferreira.
Mas voltemos à intrépida Natália. A primeira vez que me encontrei com ela foi em 1968, em Lisboa, em casa do escritor Tomás Ribas. Eu vivia então em Moçambique, mas vinha de vez em quando à Europa, a qual incluía sempre, em fim de viagem, Portugal. Dessa vez viéramos acompanhados de um casal amigo, Carlos Adrião Rodrigues e a inesquecível Quina, portadora da sabedoria e do falar capitoso de Campo de Ourique. No jantar, havia, entre outra gente de nota, a Natália Correia e o Vergílio Ferreira, acompanhado da mulher. Como sempre acontece, em reuniões muito participadas, acabam sempre por se formar pequenos grupos, para conversa animada. No grupo em que estávamos eu e a minha mulher, estavam também os nossos amigos de Moçambique, a Natália, a mulher do Vergílio Ferreira e não me lembro de mais quem mais. A certa altura, a Natália, que se encontrava de pernas traçadas, resolveu destraçá-las e fê-lo, num arco amplo, generoso e assaz vistoso. A mulher do Vergílio Ferreira lançou-lhe um olhar capaz de atear incêndios. O que foste fazer! Diante daquela reprovação veemente, a Natália, positivamente, não resistiu à tentação: passou o resto da noite a traçar e destraçar a perna, animando a conversa com a sua verve destemida. A nossa amiga Quina, com a sua palheta bem condimentada, de Campo de Ourique, fez só, à saída, este comentário: “De cada vez que a Natália destraçava a perna, via-se, ao fundo, o Convento de Mafra!”
A segunda vez que estive com a Natália foi quando vivia em Londres e, de uma feita, vim a Lisboa. Uma ex-aluna minha era uma assessora/secretária da escritora e ofereceu-se-me para me levar ao famoso Botequim. O Botequim, como se sabe, era uma coisa minúscula e estava a abarrotar de gente. Mas a Natália recebeu-me com grande espalhafato, “Meu querido sente-se aqui ao pé de mim”, o que queria dizer que metade de mim se sentou algures e a outra metade, ao colo da Natália. E assim ficámos, muito íntimos e impecavelmente castos, a conversar e a beber. Era única a Natália, corajosa, infinitamente talentosa, uma verdadeira força da Natureza. Um ser que deixa grande marca, na sua passagem breve por esta Terra.”
Eugénio Lisboa, 08.01.2024
por Eugénio Lisboa
Antes de a conhecer pessoalmente, ela esteve envolvida na minha vida, de modo breve e sem grandes consequências. Tratava-se da publicação, pela já falida editora ARCÁDIA, do meu livro JOSÉ RÉGIO – A OBRA E O HOMEM. O livro achava-se ali, patinhando na lama, sem conseguir arrancar para estrada de chão mais sólido. Tendo a Natália ido dirigir aquela outrora prestigiosa editora, por um período muito breve, ainda tentou desassossegar a pasmaceira em que jazia o meu manuscrito. Em vão. Pouco se tendo a Natália demorado naquele nicho moribundo, a minha aprofundada glosa sobre o Régio regressou ao seu sono hibernal, até que foi, inesperada e galhardamente, resgatada do oblívio, por um novo editor, Jorge Martins, que, de Lisboa, enviou a este desconhecido dele, tido e achado, nessa altura, numa Lourenço Marques onde o tiroteio crepitava, uma carta salvífica e um novo contrato mais decente do que o anterior… Estes milagres acontecem e até nos tornam momentaneamente surdos para os decibéis da metralha. Jorge Martins é hoje um dos meus melhores amigos e um valor que muito estimo e admiro, tendo sido editor, entre outros, de Vergílio Ferreira.
Mas voltemos à intrépida Natália. A primeira vez que me encontrei com ela foi em 1968, em Lisboa, em casa do escritor Tomás Ribas. Eu vivia então em Moçambique, mas vinha de vez em quando à Europa, a qual incluía sempre, em fim de viagem, Portugal. Dessa vez viéramos acompanhados de um casal amigo, Carlos Adrião Rodrigues e a inesquecível Quina, portadora da sabedoria e do falar capitoso de Campo de Ourique. No jantar, havia, entre outra gente de nota, a Natália Correia e o Vergílio Ferreira, acompanhado da mulher. Como sempre acontece, em reuniões muito participadas, acabam sempre por se formar pequenos grupos, para conversa animada. No grupo em que estávamos eu e a minha mulher, estavam também os nossos amigos de Moçambique, a Natália, a mulher do Vergílio Ferreira e não me lembro de mais quem mais. A certa altura, a Natália, que se encontrava de pernas traçadas, resolveu destraçá-las e fê-lo, num arco amplo, generoso e assaz vistoso. A mulher do Vergílio Ferreira lançou-lhe um olhar capaz de atear incêndios. O que foste fazer! Diante daquela reprovação veemente, a Natália, positivamente, não resistiu à tentação: passou o resto da noite a traçar e destraçar a perna, animando a conversa com a sua verve destemida. A nossa amiga Quina, com a sua palheta bem condimentada, de Campo de Ourique, fez só, à saída, este comentário: “De cada vez que a Natália destraçava a perna, via-se, ao fundo, o Convento de Mafra!”
A segunda vez que estive com a Natália foi quando vivia em Londres e, de uma feita, vim a Lisboa. Uma ex-aluna minha era uma assessora/secretária da escritora e ofereceu-se-me para me levar ao famoso Botequim. O Botequim, como se sabe, era uma coisa minúscula e estava a abarrotar de gente. Mas a Natália recebeu-me com grande espalhafato, “Meu querido sente-se aqui ao pé de mim”, o que queria dizer que metade de mim se sentou algures e a outra metade, ao colo da Natália. E assim ficámos, muito íntimos e impecavelmente castos, a conversar e a beber. Era única a Natália, corajosa, infinitamente talentosa, uma verdadeira força da Natureza. Um ser que deixa grande marca, na sua passagem breve por esta Terra.”
Eugénio Lisboa, 08.01.2024
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