Mona Lisa, de Leonardo da Vinci
QUOD NON FECIT
por Eugénio Lisboa
“Há gente que me persegue, atirando-me à cara aquilo
que não sou e devia ser, aquilo que não fiz e devia ter feito, as ajudas que
devia ter dado e não dei e por aí fora, interminavelmente. Que o Saramago
ganhou o Nobel e eu não, que o Saramago casou com a Pilar e eu não, que ele tem
uma Fundação e eu não, que ele se solidarizou com a Natália Correia e eu não.
Tudo verdade, tudo coisas que doem a mais não poder, mas, deixem-me que
confesse o que realmente me rasga por dentro: é que tudo isso não passa de pecadilhos
e o que eu realmente cometi foram pecados magnos, horríveis pecados de omissão.
Verdadeiras calamidades de repercussões galácticas. Com a alma a sangrar, dou
exemplos. Não fui eu quem ganhou a batalha de Ourique. Não fui eu quem
conquistou Lisboa aos mouros. Não fui eu quem obteve a independência de
Portugal, nem sequer fui o Papa que a reconheceu. Estive sempre ausente disso
tudo, recolhidinho numa aconchegada aurea mediocritas. Não matei o Conde
Andeiro nem contribuí para a vitória em Aljubarrota: nem sequer ajudei a
transportar as setas dos archeiros ingleses que nos vieram ajudar. Não dei uma
mãozinha à Padeira de Aljubarrota, deixando a desgraçada, sozinha, a malhar nos
espanhóis. Não matei o Duque de Viseu, deixando o trabalho sujo para El-Rei D.
João II. Não participei na conquista de Ceuta nem fui capaz de resgatar D.
Fernando, o Infante Santo, nem sequer tentei fazer o seu resgate, deixando-o a
apodrecer em Marrocos. Que de coisas eu não fiz! Não descobri o caminho
marítimo para a Índia e muito menos topei o Brasil. Não me encontrava em
nenhuma das naus com que Fernão de Magalhães deu a volta ao mundo. Não escrevi
OS LUSÍADAS! Nem sequer soprei umas rimas ao ouvido do Luís Vaz. O Padre
António Vieira nem sequer se dignou olhar para mim, quanto mais pedir-me ajuda.
A lei da gravitação universal passou bem sem mim. O teorema de Pitágoras e o
teorema de Fermat passaram-me ao lado. Einstein nunca me perguntou o que eu
achava da teoria da relatividade, aviando-se sozinho com ela, sem nunca me ter
pedido colaboração. Nada tive que ver com a teoria dos quanta, também os
antibióticos não tendo sido coisa da minha invenção. A vacina não foi por mim
concebida! Não fui o primeiro homem a chegar à Lua. O COURAÇADO POTEMKINE ou A
ODISSEIA NO ESPAÇO foram filmes que não realizei. O mais que consegui foi um
autógrafo de Kubrick, num livro que lhe foi dedicado.
Não dei sequer uma dica para a 9ª Sinfonia nem para
o Quinteto para clarinete, K 581, de Mozart, e nunca pintei a MONA LISA. Rodin
nunca me pediu emprestado um escopro, para esculpir O PENSADOR, e Neruda
escreveu a ODE AO GATO, sem me pedir que lhe ajustasse um único verso. E tenho
quase a certeza de que não serei o primeiro homem a aterrar em Neptuno. A lista
está longe de estar completa. Além disso, estas listas de coisas não
conseguidas têm horror ao vazio e estão sempre a encher-se de omissões novas.
Resta-me uma pequena consolação: o que se passa comigo passa-se com toda a
gente, incluindo os que me acusam de não ter feito isto ou aquilo. Também eles
não fizeram uma infernal data de coisas. É a vida, como costumava dizer o muito
estimável Guterres.”
Eugénio Lisboa, 11.01.2024
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