Falo de mim porque bem sei que a vida
lava o meu rosto com o suor dos outros,
que também sou, pois sou tudo o que posto
ao meu redor se cala, e é pedra, ou, água,
cicia apenas —O teu tempo é a trava
que te impede de ter a calma clara
do chão de lajes que o sol recobre,
este esperar por tudo que não corre,
nem pára e nem se apressa, e é só estado,
e nem sequer murmura: — O que te trazem
é o riso e o lamento, o ser amado
e o roçar cada dia a tua morte,
que não repõe em ti o, sem passado,
ficar no teu escuro, pois herdaste
e legas um sussurro, um som de passos,
uma sombra, um olhar sobre a paisagem,
memória, cálcio, húmus, eis que o mundo
nada rejeita, sendo pobre e triste
no esplendor que nos dá. A madrugada.
SONETO
Uma ausência de mim por mim se afirma.
E, partindo de mim, na sombra sobre
chão que não foi meu, na relva simples
outro ser que sonhei se deita e cisma.
Sonhei-o ou me sonhei? Sonhou-me o outro
— e o mundo a circundar-me, o ar, as flores,
os bichos sob o sol, a chuva e tudo-
ou foi o sonho dos demais que sonho?
A epiderme da vida me vestiu,
ou breve imaginar de um ócio inútil
ergueu da sombra a minha carne, ou sou
um casulo de tempo, o centro e o sopro
da cisma do outro ser que de mim fala
e que, sonhando o mundo, em mim se acaba.
IMITAÇÃO DE BOTTICELLI
Como a luz numa caixa de laranjas,
ou a chuva sobre a mesa de verduras no mercado,
desce a manhã neste jardim, descalça,
e as flores que traz, na involuntária beleza,
parecem, contra seu corpo de verão enfunado,
musgo, limo, ferrugem, as feridas que os pássaros
abrem na casca lisa e perfeita de um fruto.
lava o meu rosto com o suor dos outros,
que também sou, pois sou tudo o que posto
ao meu redor se cala, e é pedra, ou, água,
cicia apenas —O teu tempo é a trava
que te impede de ter a calma clara
do chão de lajes que o sol recobre,
este esperar por tudo que não corre,
nem pára e nem se apressa, e é só estado,
e nem sequer murmura: — O que te trazem
é o riso e o lamento, o ser amado
e o roçar cada dia a tua morte,
que não repõe em ti o, sem passado,
ficar no teu escuro, pois herdaste
e legas um sussurro, um som de passos,
uma sombra, um olhar sobre a paisagem,
memória, cálcio, húmus, eis que o mundo
nada rejeita, sendo pobre e triste
no esplendor que nos dá. A madrugada.
Uma ausência de mim por mim se afirma.
E, partindo de mim, na sombra sobre
chão que não foi meu, na relva simples
outro ser que sonhei se deita e cisma.
Sonhei-o ou me sonhei? Sonhou-me o outro
— e o mundo a circundar-me, o ar, as flores,
os bichos sob o sol, a chuva e tudo-
ou foi o sonho dos demais que sonho?
A epiderme da vida me vestiu,
ou breve imaginar de um ócio inútil
ergueu da sombra a minha carne, ou sou
um casulo de tempo, o centro e o sopro
da cisma do outro ser que de mim fala
e que, sonhando o mundo, em mim se acaba.
IMITAÇÃO DE BOTTICELLI
Como a luz numa caixa de laranjas,
ou a chuva sobre a mesa de verduras no mercado,
desce a manhã neste jardim, descalça,
e as flores que traz, na involuntária beleza,
parecem, contra seu corpo de verão enfunado,
musgo, limo, ferrugem, as feridas que os pássaros
abrem na casca lisa e perfeita de um fruto.
Alberto da Costa e Silva nasceu em São Paulo a 12 de Maio de 1931. Faleceu a 26 de Novembro de 2023. Foi um notável autor maior que produziu uma obra diversa .Ensaísta, memorialista, historiador e poeta. Neste domínio, Poesia, publicou O parque e outros poemas (1953), O tecelão tecelão (1962), Livro de linhagem (1966), As linhas da mão (1978), A roupa no estendal, o muro, os pombos (1981), entre outros. Recebeu, em 2000, o Prémio Jabuti, pela obra poética.
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