segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Eugénio Lisboa: A Poética da Indignação



Eugénio Lisboa: A Poética da Indignação Em Tempos Escuros
por Vamberto Freitas
“O mais recente livro de Eugénio Lisboa vem com uma capa negra e branca, Poemas em Tempo de Guerra Suja. Por certo que comecei pela Introdução com que o autor abre uma desenvolvida sequência de poemas em várias formas, com os sonetos a dominar. Claro que são um sustentado grito contra a guerra na Ucrânia a partir de 26 de Fevereiro passado. Tinha lido um pouco depois a sua coluna da revista LER, sob o título desafiador, “A Filologia Leva Ao Crime”. Dirigia-se ele a certos intelectuais, com voz pública e publicada, que se refugiam num tortuoso jogo de palavras que ele interpreta como uma tentativa de nunca dizer o que para ele é mais do que evidente: o assalto assassino a todo um povo, uma cultura, uma língua, uma geografia precisa, uma história real, e não imaginada por outros. Limito-me a reproduzir aqui o que Eugénio Lisboa escreve na sua prosa, e agora na sua poesia, que, como também diz ele, não é só sobre o conflito russo-ucraniano, pois todos precisamos de fugir de quando em quando para outras realidades e palavras. Como qualquer cidadão consciente dos “tempos escuros” em que vivemos, vou tomando conhecimento de tudo isto através do que leio em variadas publicações ou vejo diariamente nas televisões. Não teorizo sobre o que me é estranho e nunca vivenciado, apenas aprecio a escrita de uns e rejeito, necessariamente, a de outros, conforme a minha noção de ética, conforme o que vejo ao longe, juntamente com todos os outros, os que têm a sua leitura própria dos acontecimentos em curso. A biografia e bibliografia de Eugénio Lisboa autorizam-no a este horror da guerra: ver e sentir em tempo real o inferno que uns criam para outros, de alma mutilada e corpos mortos no fogo que parece nunca mais cessar ou apagar-se. Nessa coluna aqui referenciada, o autor escreve como sempre quando o tema o requer – sem metáforas nem outras ofuscações do que pensa, dirigindo-se a nomes conhecidos entre nós e da nossa língua. “Filologia – escreve nessa crónica da LER – lava tudo, até as mãos cheias de sangue do carrasco. ‘Contextualizar’ o crime é o mesmo que lavá-lo ou até apagá-lo”. Eugénio Lisboa nasceu na então Lourenço Marques em 1930, muito viu e viveu a nossa história africana e nacional antes, durante e depois das datas-chave dos nossos próprios infernos e eventual libertação. Na literatura, que ele sempre cultivou com um ardor pouco comum entre nós, nenhum tema lhe é alheio, a sua universalidade, o seu engajamento com outras línguas e escritores, a sua experiência numa carreira multifacetada continua a ser um acto literário feito de linguagens abertas, destemidas, na poesia, e em ensaios, memórias e diários. Não tenho espaço para especificar nem um pouco dessa obra. Que a descubram os leitores menos renitentes. O que aqui fica dito vem só em jeito de dizer um pouco mais sobre o presente volume de poesia, bela e furiosa, sem apologia alguma, directa, em diálogo com a realidade, em diálogo com outros poetas da desfortuna, dedicado a amigos e amigas que tornam os seus dias um pouco mais amenos ali em São João do Estoril.
Poemas em Tempo de Guerra Suja é um outro grito contra o silêncio, neste caso alvejando o silêncio dos poetas portugueses em particular ante a catástrofe que se abateu sobre o pais de Volodymyr Zelensky. Se grande parte destes versos é dirigida ao inferno que vemos diariamente no conforto das nossas salas, os outros confrontam a falsidade, por assim dizer, de vidas que ao longe se dão ao luxo de falar em “contextos”, “história”, “estratégia” e “análises” afins que até há poucos dias quase ninguém entre nós – eu incluído, por certo – conhecia. São versos contra a morte de inocentes, contra a ideia nefasta que “os fins justificam os meios”, que a ideologia do carrasco se sobrepõe à identidade da sua vítima. Eugénio Lisboa nunca escreveu durante a sua já longa e muito vivida vida uma única palavra para ser aplaudido ou premiado (que tem sido constantemente), antes para recriar a liberdade e dignidade, a sua e a de todos os outros. Intelecto e coração nunca desligados, ou em contradição, como diria Friedrich Nietzche, “demasiado humana”. Convoca memórias dos sucessivos crimes na História, convoca vozes desde Camões a outros de séculos e dias mais recentes, usa o palavrão evitado quase sempre por outras finuras nossas, descreve, insinua, e sobretudo denuncia a desumanidade de uma “criança sem asas”, e um morto com as mãos atadas no meio da rua, com os abrigos de todo um povo caídos perante bandeiras falsas a flutuar, uma vez mais, do carrasco e seus apoiantes próximos e distantes, desdiz as supostas desculpas de sempre, chora a morte e pede, sempre, vida.
“Em suma, há uma grande literatura – escreve o poeta na Introdução, pensando a escrita histórica em várias formas de muitos outros povos – contra a guerra, feita por gente bem-intencionada e talentosa, que julga que, mostrando quão horrorosas são as guerras, poderá evitar guerras futuras. Tem-se visto que nada têm conseguido. A eles me junto agora, sabendo muito bem que estou a empurrar para cima o penedo de Sísifo, que voltará a tombar, assim oferecendo à comunidade um serviço inútil. Mas fica-nos este absurdo privilégio – ético, mas sobretudo estético – de sabermos não desistir. Poder recuar e não recuar Poder abocanhar e não abocanhar”.
Seguem-se alguns poemas que desenvolvem essa filosofia, essa vontade e obrigação da palavra da resistência, condenação – contendo em si próprias um hino à possibilidade do triunfo da vida sobre a morte, a morte que Dante anteviu e outros da mesma estatura falsificaram, e ainda outros glorificaram. Shakespeare e Camões andam também por aqui, os de altíssima voz histórica no soletrar dos nossos equívocos eternos. Como todos os seus leitores sabem, Eugénio Lisboa, particularmente no seu brilhante ensaísmo, cita muitos outros com frequência, ora para os abraçar, ora para os desdizer com a mesma fúria. Ler Eugénio Lisboa é ler a junção, como ele próprio afirma sobre os deveres da literatura, da ética e estética, indissociáveis em qualquer texto consequente. O resto é o assobio imitativo da cotovia, ou, para chegarmos um pouco mais próximos, o grito noturno, desorientado, do cagarro.
Nos diversos chamamentos da melhor literatura ocidental em Poemas em Tempo de Guerra Suja Eugénio Lisboa inclui naturalmente a grande obra de Joseph Conrad, O Coração das Trevas/Heart of Darkenss que, como se sabe, deu lugar ao grande filme de Francis Ford Coppola, Apocalypse Now. Estamos sempre à beira do abismo e do terror. Do poema “O Coração Das Trevas Revisitado Ao Ver As Ruínas De Bucha”:
 
Corpos no meio da estrada, já frios,
as mãos amarradas atrás das costas,
o horror, o horror dos calafrios…
Que de perguntas, todas sem respostas!
 
A condição humana em juízo,
e que de horríveis suspeitas à solta!
Então somos isto? Será preciso
tanta barbaridade à nossa volta?
 
Será que Mistah Kurtz teve herdeiros,
os quais por toda a parte semearam
horrendos e sangrentos paradeiros?
 
Dir-se-á que nos homens aterraram
demónios nunca antes conhecidos,
oriundos de infernos desmedidos!
 
Sim, Poemas em Tempo de Guerra Suja é um livro de espanto, de asco, perante as cenas nos campos e nas ruas de batalha, de asco perante o silêncio corrente entre quase todos nós. Não é um bater no peito, é um bater na cobardia generalizada ante o que o Kurtz de Joseph Conrad gritava do cimo de uma árvore admirando a chacina dos nativos indefesos: “o horror, o horror”, a litania escabrosa, o orgasmo demoníaco do monstro. Os constantes pontos de interrogação ao longo destas páginas são para quem? Ou melhor: Por Quem os Sinos Dobram? Não perguntes por quem, como repetiria Ernest Hemingway no seu mais famoso romance de guerra: dobram por ti. Sempre houve momentos na história da literatura que tornam certas questões do existencialismo urbano contemporâneo totalmente descabidas, mesmo que continuemos a cultivá-las. Não temos outra saída. Só que os concomitantes gritos de uns poucos são por vezes a nossa única redenção.”
Vamberto Freitas
, texto publicado no blog Nas Duas Margens e em  “BorderCrossings” do Açoriano Oriental, 9 de Setembro, 2022.

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