sexta-feira, 19 de julho de 2019

Sobre "As Ondas " de Virginia Woolf

 Virginia Woolf

Em Julho de 1931 , Virginia Woolf acabou o seu sexto romance "As Ondas".
Marguerite Yourcenar,  a sua tradutora francesa, descreveu-o assim: 
"As Ondas é um livro com seis personagens, ou melhor, seis instrumentos musicais, pois consiste unicamente em monólogos interiores, cujas curvas se sucedem e entrecruzam com uma segurança que lembra a "Arte da Fuga" de Bach. Nesta narrativa musical, os breves pensamentos de infância, as rápidas reflexões sobre os momentos de juventude e de confiante camaradagem desempenham o mesmo papel dos allegri nas sinfonias de Mozart, abrindo espaço para os lentos andantes dos imensos solilóquios sobre a experiência, a solidão e a maturidade. 
Tanto como uma meditação sobre a vida, As Ondas é um ensaio sobre a solidão. Trata-se de seis crianças, três raparigas, Rhoda, Jinny e Susan; e de três rapazes, Louis, Neville e Bernard, que vemos crescer, diferenciarem-se e envelhecer. Uma sétima criança, que nunca toma a palavra e que só conhecemos através das outras, é o centro do livro, ou melhor, o seu coração."
Revisitámos o "Diário " de  Virginia Woolf para extrairmos algumas  entradas relativas à conclusão desta obra. E, para completar o olhar sobre este romance, transcrevemos também as suas primeiras páginas.

JULHO 1931
Terça, 14 de Julho
" É agora meio-dia de 14 de Julho - e o ( Bob entrou, a pedir-me que assinasse um papel para se arranjar uma pensão ao Palmer(...).
Eu queria dizer  que acabei mesmo agora de corrigir a cena de Hampton Court. (É a última  correcção, se Deus quiser.)
Mas as contas de As Ondas são assim, acho eu:
Comecei a sério por volta de 10 de Setembro de 1929.
Acabei a primeira versão em 10 de Abril de 1930.
Comecei a segunda versão em 1 de Maio de 1930. 
Acabei a segunda versão em 7 de Fevereiro de 1931.
Comecei a corrigir a segunda versão em 1 de Maio de 1931.
Acabei em 22 de Junho de 1931.
Comecei a corrigir o que passei à máquina em 23 de Junho de 1931.
Hei-de acabar (espero) no dia « 28 de Junho»  18 de Julho.
E depois só faltam as provas.

Sexta,  17 de Julho
Sim. Esta manhã acho que posso dizer que acabei . Isto é , copiei mais uma vez , a décima oitava vez , as primeiras frases. o L. vai lê-lo amanhã e eu vou abrir este caderno para registar o seu veredicto. A minha opinião - valha-me Deus - é que se trata de um livro difícil. Não sei se alguma vez me senti tão extenuada. E estou nervosa, confesso, por causa do L. . Para já , ele vai ser honesto , mais honesto ainda do que é costume. E se calhar é um fiasco. E eu já não posso trabalhar mais . E quer-me parecer que o livro é bom; mas incoerente, espesso; em excessivos espasmos. Seja como for , tentei dar a minha visão , e se não atingir o alvo pelo menos não errei a direcção. Mas estou nervosa. Se calhar é pequeno, e pode dar um efeito afectado. Sei lá.  E, como eu dizia, e repito para forçar esta sensaçãozinha  bem desagradável no coração, hei-de estar nervosa até ouvir o que o L., terá para me dizer quando entrar amanhã à noite , por exemplo, ou no domingo de manhã, na minha sala do jardim, trazendo o manuscrito, e se sentar começando por um «ora bem!».

Domingo, 19 de Julho
«É uma obra-prima» , disse o L., ao entrar no pavilhão esta manhã. «É o teu melhor livro». Anoto isto; e acrescento que ele também acha  as primeiras cem páginas extremamente difíceis,  e não sabe até onde lerá o comum dos leitores Mas que que alívio, meu Deus! Para desentorpecer fui dar uma volta , à chuva até à Quinta dos Ratos, num júbilo, e quase me resignei aos factos : está a ser instalada uma quinta para criação de cabras, com a respectiva casa em construção, na encosta perto de Northease. "
Virginia Woolf, in "Diário- segundo volume 1927-1941", Bertrand Editora, pp.141,142, 143
As Ondas 
 "O Sol ainda não nascera. Era quase impossível distinguir o céu do mar, mas este apresentava algumas rugas, como se de um pedaço de tecido se tratasse. Aos poucos, à medida que o céu clareava, uma linha escura estendeu-se no horizonte, dividindo o céu e o mar. Então, o tecido cinzento coloriu-se de manchas em movimento, umas sucedendo-se às outras, junto à superfície, perseguindo-se mutuamente, sem parar.   Quando se aproximavam da praia, as barras erguiam-se, empilhavam-se e quebravam-se, espalhando na areia um fino véu de água esbranquiçada. As ondas paravam e depois voltavam a erguer-se, suspirando como uma criatura adormecida, cuja respiração vai e vem sem que disso se aperceba. Gradualmente, a barra escura do horizonte acabou por clarear, tal como acontece com os sedimentos de uma velha garrafa de vinho que acabam por afundar e restituir à garrafa a sua cor verde. Atrás dela, o céu clareou também, como se os sedimentos brancos que ali se encontravam tivessem afundado, ou se um braço de mulher oculto por detrás da linha do horizonte tivesse erguido um lampião e este espalhasse raios de várias cores, branco, verde e amarelo (mais ou menos como as lâminas de um leque), por todo o céu. Então, ela levantou ainda mais o lampião, e o ar pareceu tornar-se fibroso e arrancar, daquela superfície verde, chispas vermelhas e amarelas, idênticas às que se elevam de uma fogueira. Aos poucos, as fibras da fogueira foram-se fundindo numa bruma, uma incandescência que levantou o peso do céu cor de chumbo que se encontrava por cima, transformando-o num milhão de átomos de um azul suave. O mar foi, aos poucos, tornando-se transparente, e as ondas ali se deixavam ficar, murmurando e brilhando, até as faixas escuras quase desaparecerem. 
Devagar, o braço que segurava a lanterna elevou-se ainda mais, até uma chama brilhante se tornar visível; um arco de fogo ardendo na margem do horizonte, cobrindo o mar com um brilho dourado.   A luz atingiu as árvores do jardim, tornando, primeiro, esta folha transparente, e só depois aquela. Lá no alto, uma ave chilreou; seguiu-se uma pausa; mais abaixo, escutou-se outro chilreio. O sol definiu os contornos das paredes da casa, e, semelhante à ponta de um leque, um raio de luz incidiu numa persiana branca, colocando uma impressão digital azulada por baixo da folha da janela do quarto. A persiana estremeceu ligeiramente, mas lá dentro tudo se mostrava fosco e inconsistente. Cá fora, os pássaros cantavam uma melodia sem sentido.  
 - Vejo um anel - disse Bernard - suspenso por sobre mim. Está suspenso num laço de luz e estremece.   
- Vejo uma lâmina de um amarelo pálido - disse Susan -, espalhando-se até encontrar uma risca púrpura.  
 - Ouço um som - disse Rhoda -, piu, piu, piu, piu, a subir e a descer.  
 - Vejo um globo - disse Neville - suspenso numa gota que cai de encontro à encosta de uma enorme montanha.   
- Vejo uma borboleta escarlate - diss Jinny --, tecida com fios de ouro.  
 - Ouço cascos a bater - disse Louis. - Está preso um animal bastante grande. Bate os cascos,  bate e bate.   
- Reparem na teia de aranha ao canto da varanda - disse Bernard. - Está cheia de contas de água, de gotas de luz.   
- As folhas juntaram-se em torno da janela como se fossem orelhas pontiagudas - disse Susan. 
  - Há uma sombra no caminho -- disse Louis. - Parece um cotovelo dobrado.  
 - A erva está cheia de linhas luminosas - disse Rhoda. - De certeza que caíram das árvores.  
 - Nos túneis existentes entre as folhas, podem ver-se olhos brilhantes. São de pássaros - disse Neville. 
  - As hastes estão cobertas de pêlos curtos e duros - disse Jinny - e as gotas de água ficam presas neles. 
  - Uma lagarta enroscou-se e parece um anel de onde saem muitos pés verdes - disse Susan.  
 - Um caracol cinzento vem a descer o caminho, alisando as ervas atrás dele - disse Rhoda.  
 - E as luzes das janelas reflectem-se aqui e ali na relva - disse Louis. 
  - As pedras fazem-me ficar com os pés frios - disse Neville. - Sinto-as a todas, uma a uma, redondas e pontiagudas.  
 - Tenho as costas das mãos quentes - disse Jinny-, mas as palmas estão pegajosas e húmidas por causa do orvalho.  
 -Agora, o galo está a cantar e lembra um esguicho de água avermelhada numa corrente branca - disse Bernard. 
 - Os pássaros não param de cantar à nossa volta e por todo o lado - disse Susan.   - O animal bate as patas; o elefante com a perna presa; o enorme animal que está na praia bate os cascos - disse Louis.  
 - Reparem na casa - disse Jinny -, com todas as janelas e persianas brancas.  
 - A água fria começa a correr na torneira da cozinha - disse Rhoda -, caindo no peixe que está na bacia.   
- As paredes estão cheias de rachas douradas - disse Bernard -, e por baixo das janelas há muitas sombras azuis em forma de dedos.  
 -Agora, Mrs. Constable está a colocar as suas meias escuras e grossas - disse Susan. 
 - Quando o fumo se elevar na chaminé, o sono escapar-se-á pelo telhado como uma névoa muito fina - disse Louis.   
- Os pássaros começaram por cantar em coro - disse Rhoda. - Agora, a porta da cozinha já não está trancada. E lá vão eles a voar. E lá vão eles pelos ares como uma mão-cheia de sementes. Mesmo assim, há um que continua a cantar junto à janela do quarto.  
 - Formam-se bolhas no fundo da frigideira - disse Jinny - Depois, elevam-se, cada vez mais rápidas, até formarem uma cadeia prateada que chega ao topo.  
 - Agora, o Billy está a escamar o peixe com uma faca - disse Neville. 
  - A janela da casa de jantar é agora azul-escura - disse Bernard -, e o ar ondula por cima das chaminés. 
  - Uma andorinha está empoleirada no fio eléctrico - disse Susan. - E a Biddy poisou o balde com força nas lajes da cozinha. 
  - Aquilo era a primeira badalada do relógio da igreja - disse Louis. - A seguir vêm as outras; uma, duas; uma, duas. 
  - Olhem para a toalha, muito branca, a voar para cima da mesa - disse Rhoda. - Vêem-se, agora, os círculos de porcelana branca e faixas prateadas ao lado dos pratos.
  - De repente, uma abelha zumbe ao meu ouvido - disse Neville. - Está aqui; já se foi embora.  
 - Estou a ferver. Tenho frio - disse Jinny. - Ou estou ao sol ou à sombra.  
 - Já se foram todos embora - disse Louis. - Estou só. Foram para casa tomar o pequeno-almoço, e eu fiquei ao pé do muro, entre as flores. Ainda é cedo, falta muito tempo para ir para as aulas. As flores são como manchas incrustadas nas profundezas verdes. As pétalas são arlequins. As hastes erguem-se a partir de buracos negros. As flores, semelhantes a peixes luminosos, recortando-se contra um fundo escuro, nadam nas águas verdes. As minhas raízes chegam às profundezas do mundo; passam por terrenos secos e alagados; passam por veios de chumbo e prata. Nada mais sou que fibra. Tudo me faz estremecer, e a terra comprime-se contra os meus veios. Cá em cima, os meus olhos são como folhas verdes e não vêem. Cá em cima, sou um rapaz vestido de flanela cinzenta, com as calças apertadas por um cinto, com uma serpente de bronze. Lá em baixo, os meus olhos são como os das figuras de pedra existentes nos desertos junto ao Nilo: desprovidos de pestanas. A caminho do rio, vejo passar mulheres com as suas ânforas vermelhas; vejo camelos baloiçando-se e homens com turbantes. Ouço tropéis e tremores em meu redor.   
Cá em cima, o Bernard, o Neville, a Jinny e a Susan (mas não a Rhoda) passeiam pelos canteiros com as suas redes. Andam a caçar as borboletas que poisam nas flores. Estão a varrer a superfície do mundo. As redes estão cheias de asas esvoaçantes. "Louis! Louis! Louis!", gritam. No entanto, não  me podem ver. Estou do outro lado da sebe. Existem apenas alguns buraquinhos entre as folhas. Oh, meu Deus, eles que passem! Eles que estendam um lenço no cascalho e nele coloquem as borboletas. Eles que contem as suas borboletas com manchas pretas e amarelas, as suas vanessas e borboletas-da-couve, mas que não me vejam. Sou tão verde como um teixo à sombra da vedação. Criei raízes no meio da terra. O meu corpo é um caule. Carrego no caule. Uma gota corre por ele lentamente, e, aos poucos, vai-se tornando maior, cada vez maior. Agora, qualquer coisa cor-de-rosa passa pelo buraquinho. Agora, um olhar passa pela fenda. A luz que dele emana atinge-me. Sou um rapaz com um fato de flanela cinzenta. Ela encontrou-me. Toca-me na nuca. Beija-me. Tudo se desmorona. 
 - Logo a seguir ao pequeno-almoço - disse Jinny -, eu andava a correr. Vi as folhas mexerem-se através de uma abertura na sebe. Pensei: É um pássaro no ninho. Afastei os ramos e olhei, mas não vi pássaro nem ninho. As folhas continuaram a mover-se. Estava assustada. Passei a correr pela Susan, pela Rhoda, pelo Neville e pelo Bernard. Estavam todos a falar na arrecadação. Gritei enquanto corria, depressa, cada vez mais depressa. Que faria mexer as folhas? Qual a coisa que faz mexer o meu coração, as minhas pernas? Foi então que aqui cheguei e te vi, verde como um arbusto, como um ramo, muito quieto, Louis, com os olhos vítreos. Estará morto?, pensei, e beijei-te. Por baixo do vestido cor-de-rosa, o meu coração saltava, semelhante às folhas, que, e muito embora nada exista que as faça mexer, não param de oscilar. Agora, chega-me ao nariz o odor a gerânios; chega-me ao nariz o odor a terra vegetal. Danço. Ondulo. Deixo-me cair sobre ti como uma rede de luz. Deixo-me ficar deitada em cima de ti, a tremer. 
 - Vi-a beijá-lo através da fenda na sebe - disse Susan. - Levantei a cabeça do vaso das flores e espreitei por uma fenda da sebe. Vi-a beijá-lo. Vi-os, à Jinny e ao Louis, a beijarem-se. Agora, só me resta embrulhar a minha dor neste lenço. Vou amachucá-lo com força até ficar igual a uma bola. Antes das aulas, irei sozinha para o bosque das faias. Não me irei sentar à mesa, a fazer contas. Não me irei sentar ao lado da Jinny e do Louis. Vou levar a minha angústia e poisá-la nas raízes, por baixo das faias. "
Virginia Woolf, in "As ondas", Editor Relógio D'Água

Sobre a autora:
"Virginia Woolf nasceu em Londres a 25 de Janeiro de 1882, filha de Sir Leslie Stephen, escritor e historiador ilustre da Inglaterra vitoriana. Desde cedo ligada a grupos de intelectuais, casou em 1912 com Leonard Woolf e com ele fundou a editora Hogarth Press, responsável pela revelação de autores como Katherine Mansfield e T. S. Eliot e pela publicação das suas próprias obras. Reconhecida como uma das mais proeminentes figuras do modernismo britânico, destacam-se entre os seus trabalhos os romances Mrs Dalloway (1925), Orlando (1928) e As Ondas (1931), assim como o ensaio Um Quarto que Seja Seu (1929). Após sucessivas crises depressivas e não suportando o isolamento provocado pelo agravar da Segunda Guerra Mundial, suicida-se a 28 de Março de 1941, em Lewes."

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