sábado, 6 de julho de 2019

Diário de Florbela Espanca

Transcrevemos, hoje, a primeira entrada do Diário de Florbela Espanca. "Durante o ano de 1930,  escreveu um Diário, o único da sua vida. Florbela Espanca suicidou-se a 8 de Dezembro de 1930, seis dias depois da última entrada no diário. O manuscrito encontra-se no "Grupo de Amigos de Vila Viçosa", tendo sido publicado, pela primeira vez , depois de passados  50 anos sobre a sua morte, por questões de partilhas dos direitos autorais entre os seus herdeiros.

JANEIRO 1930
11- Para mim? Para ti? Para ninguém. Quero atirar para aqui, negligentemente, sem pretensões de estilo, sem análises filosóficas , o que os ouvidos dos outros não recolhem: reflexões, impressões, ideias, maneiras de ver, de sentir - todo o meu espírito paradoxal, talvez frívolo, talvez profundo.
Foram-se , há muito, os vinte anos, a época das análises, das complicadas dissecações interiores. Compreendi por fim que nada compreendi, que mesmo nada poderia ter compreendido de mim. Restam-me os outros... talvez por eles possa chegar às infinitas  possibilidades do meu ser misterioso, intangível, secreto.
Nas horas que se desagregam, que desfio entre os meus dedos parados, sou a que sabe sempre que horas são, que dia é, o que faz hoje, amanhã, depois. Não sinto deslizar o tempo através de mim, sou eu que deslizo através dele e sinto-me passar com a consciência nítida dos minutos que passam e dos que se vão seguir. Como compreender a amargura desta amargura? Onde páras tu, ó Imprevisto, que vestes de cor-de-rosa tantas vidas? Deus malicioso e frívolo que tão lindos mantos teces sobre os ombros das mulheres que vivem? Para mim és um fantoche, ora amável ora rabugento, de que eu conheço todos os fios , de quem eu sei de cor todas as contorções. Attendre sans espérer  poderia ser  a minha divisa , a divisa do meu tédio que ainda se dá ao prazer de fazer frases.
Não tenho nenhum intuito especial ao escrever estas linhas, não viso nenhum objectivo, não tenho em vista nenhum fim. Quando morrer, é possível que alguém , ao ler estes descosidos  monólogos, leia o que sente  sem o saber dizer , que essa coisa tão rara neste mundo - uma alma - se debruce com um pouco de piedade, um pouco de compreensão , em silêncio, sobre o que eu fui ou o que julguei ser. E realize o que eu não pude: conhecer-me."
Florbela Espanca, in " Contos e Diário", Publicações Dom Quixote,  pp.267-270

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