Jorge de Sena |
Jorge de Sena – o “urso mal lambido”
Por Eugénio Lisboa
"No dia 5 de Junho de 1978, encontrava-me eu na embaixada de Portugal em Londres, onde acabara de chegar, para tomar posse, poucos dias antes, quando me deram a notícia do falecimento de Jorge de Sena, na véspera, em Santa Barbara, na Califórnia. Tive um choque e uma sensação aguda de uma grande injustiça acabada de cometer-se. Não tinha sabido que o escritor estava doente, mais, não imaginava facilmente Jorge de Sena doente. Com, naquela altura, apenas 58 anos, conhecera-o, pessoalmente, seis anos antes, em Lourenço Marques (Moçambique), onde ele fora para, a convite da Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra, proferir algumas conferências. Ficara profundamente impressionado com a vitalidade ágil do escritor, com a sua conversa aliciante, vigorosa e mesmo sedutora, com a fluência fácil com que debitava a sua nunca árida erudição. Jorge de Sena era uma verdadeira força da natureza e as forças da natureza não se extinguem assim.
Por essa altura, uma certa aura de glória começara já a bafejar o escritor. O autor de Fidelidade era dono, ainda relativamente novo, de uma obra imensa e profunda. Dissemos já algures que “uma obra grande e profunda é sempre o resultado de uma longa e nunca saciada obsessão.” E citámos, a propósito, um grande poeta francês – Valéry – que observara ser “a glória […] uma espécie de doença que nós contraímos por irmos para a cama com o nosso pensamento.”
Poeta, ficcionista, dramaturgo, ensaísta, crítico, historiador e epistológrafo compulsivo, Sena entregara-se, sem se poupar, à construção de uma obra imponente. Nem sempre fora reconhecido na justa medida do seu valor e do seu empenho. Em Portugal, nunca recebera um prémio literário e, depois do 25 de Abril, nenhuma universidade portuguesa se dignara oferecer-lhe um lugar nem nenhuma instituição cultural lhe abrira as portas. Humilhado, ofendido, mas não resignado, claramente despeitado - e com razão - – a sua correspondência com os amigos eloquentemente registava a ferida que o roía. Urso mal lambido, como lhe chamou, certeiramente, Eduardo Lourenço, vingava-se da mesquinhez, produzindo uma obra vasta e de grande qualidade. Nisto, lembrava o romancista inglês D. H. Lawrence, que desabafava, nestes termos: “Eu gosto de escrever, quando me sinto despeitado; é como dar um bom espirro.” Fosse como fosse, mesmo sem prémios nem lugares institucionais, relutantemente, avaramente, a glória fora-se-lhe chegando: torna-se impossível negar a força da evidência. E a sua obra aí estava a impor-se como uma grande e incontornável evidência. E fora, precisamente nesse momento, quando o renitente reconhecimento da sua grandeza se começava a impor, que a morte viera, traiçoeiramente, procurá-lo. Não era justo e era profundamente doloroso para os seus próximos e amigos.
Jorge de Sena saíra de Portugal, em 1959, rumo ao Brasil, para o começo de um exílio que não ia ter fim. Não que ele assim o desejasse. Sonhou sempre regressar, se não a Portugal, ao menos, à Europa. Mas foi, com o tempo, aprendendo que não há nunca regresso possível. Num poema comovente do livro Peregrinatio ad loca infecta, de 1967 - já com oito anos de exílio distribuído pelo Brasil e Estados Unidos – pondera: “É que os lugares acabam. Ou ainda antes / de serem destruídos, as pessoas somem, / e não mais voltam onde parecia / que elas ou outras voltariam sempre / por toda a eternidade. Mas não voltam, / desviadas por razões ou por razão nenhuma.” Sabia, pois, que, mesmo que regressasse, um dia, já não regressaria àquilo que existira antes do exílio. Mas o belo poema de 1961, “Glosa de Guido Cavalcanti”, preconiza claramente a certeza de um nunca regressar: “Porque não espero de jamais voltar / à terra em que nasci (…) / […] / porque não espero e morrerei / no exílio sempre, mas fiel ao mundo./”
Dezanove anos durará esse exílio, que só terminará com a sua morte, em 1978. Anos de dura e lúcida aprendizagem, como ele testemunhou numa admirável entrevista dada à revista O Tempo e o Modo, em 1968: “No meu caso pessoal, não creio que nove anos de vida no estrangeiro, iniciados quando eu ia fazer quarenta anos de idade, tivessem alterado fundamentalmente os meus interesses ou a minha «educação sociocultural». Nunca fui de entre Melgaço e Vila Real de Santo António, eu, um estrangeirado notório, exactamente como vários antecessores meus, dos grandes, na história literária portuguesa. Mas sem dúvida que a experiência de viver no Brasil (…), e a de viver nos Estados Unidos, lá entre brasileiros, aqui entre americanos (…), me abriu os olhos para algumas duras realidades do mundo contemporâneo, cuja visão raro encontro mesmo nas entrelinhas das publicações portuguesas. Aprendi, por exemplo, que a crueldade e a injustiça são terrivelmente universais, e que todas as formas de governo são extremamente imperfeitas, e que a mesma mesquinhez e a mesma estupidez subsistem em toda a parte. Isto não me tornou, de modo algum, céptico e conformista, em relação às minhas ideias de sempre, mas deu-me uma sabedoria e uma amarga prudência nas generalizações e nas particularizações.”
Jorge de Sena, de quem se assinala este ano o centenário do nascimento, viveu sempre um exílio desassossegado, tirando o maior partido cultural possível dos países onde foi forçado a viver, mas sem afastar nunca o espírito de um Portugal que o obcecava, o irritava, mas com que profundamente se comprometia. Sempre sedento de um reconhecimento que entendia só avaramente lhe ser concedido e que, por isso, quase indiscretamente, reivindicava. Na já referida entrevista a O Tempo e o Modo, notava, com vigor e algum acinte: “Não sou [um dos meus mais seguros admiradores]. A única razão pela qual parece que eu proclamo a cada instante o meu talento é porque, até muito recentemente, se eu o não fizesse, ninguém o faria. E se eu sou agudamente sensível a todas as formas de injustiça, haveria de deixar que ela se exercesse impunemente comigo? Poucos escritores portugueses de relativo mérito deverão tão pouco à crítica como eu. De todos os sectores, o silêncio ou o amesquinhamento foram de regra durante quase trinta anos. Onde está a bibliografia a meu respeito durante trinta anos?”
Depois da sua morte, os inéditos e dispersos, que abundantemente deixara, incluindo a sua vasta correspondência, foram piedosamente recolhidos e publicados em livro pela sua viúva, Mécia de Sena, que a essa tarefa votou uma colossal energia e um amoroso cuidado. Além de lhe reeditar os livros que entretanto se tinham esgotado.
Jorge de Sena chamou um dia ao seu falecido amigo Adolfo Casais Monteiro “um cidadão do mundo em língua portuguesa”. Se alguém o foi – e pela medida grande – foi-o, indubitavelmente, Jorge de Sena. Não sei, até que ponto, a sua obra é hoje ainda lida e meditada com a atenção que merece. Numa entrevista dada à Vida Mundial, de 25.08.1972, Jorge de Sena dizia: “Não sei e acho que ninguém sabe exactamente «quem» lê as coisas em Portugal.” Eu não sei quem lê hoje o autor de O Físico Prodigioso e de Sinais de Fogo. Fala-se agora muito – tornou-se moda – no Panteão Nacional e, a propósito de cada morto mais ou menos notório, acena-se-lhe com o Panteão. Jorge de Sena não fugiu a esse aceno. Mas eu acho que o único Panteão adequado a um grande e vital escritor é a permanência dele no coração dos seus múltiplos leitores. É esse o Panteão que sinceramente desejo para o autor de Metamorfoses: que continue vivo e activo porque continua a ser lido e reeditado. Se possível, amado. "
Eugénio Lisboa, em ensaio publicado no JL, nº 1272, de 3 a 16 de Julho de 2019
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