por Eugénio Lisboa
O primeiro dever de um
autor
é deixar o seu país pelas ruas
da amargura.
Brendan Behan
Eugénio Lisboa |
«Eça de Queirós, ao malhar no país, sem piedade e com a
celebrada bengalada do homem de bem, seja n’Os Maias, seja n’O Conde
d’Abranhos, n’A Capital, n’O Primo Basílio, em Uma
Campanha Alegre ou n’A Relíquia, causa, nos reaccionários
quimicamente puros, crispações de recuperação lenta e difícil. Invoca-se, em
geral e para o caso, o patriotismo de que ele teria estado malignamente
deficitário. Ele e toda a sua geração de campeadores melhoristas, gente sem
sentimentos de boa cepa tradicionalista... Por mim, reajo sempre de modo
diferente: só quem ama se indigna. Os grandes escritores que amam muito o seu
país sofrem profundamente quando ele não vive à altura das mais exigentes
expectativas. Montherlant descobriu um dia que devia amar muito a França, visto
que nunca a poupava – e com que eloquente virulência! – nos momentos em que ela
descia abaixo dos padrões de avaliação mais elevados. Fiz uma consulta rápida
ao que vários grandes autores das mais diversas épocas tiveram a dizer do
“patriotismo” e não encontrei um só que não fosse acidamente escarninho para
com o “patriotismo” e os “patriotas”. Henry Fielding, o grande romancista
inglês, é sucinto: “Patriota: candidato
a um lugar. Política: a arte de o conseguir”. Desde o famoso aforismo de Samuel Johnson
(“O patriotismo é o último refúgio dos patifes”), passando por Wilde (“O
patriotismo é a virtude dos viciosos”), até George Bernard Shaw (“Patriotismo é
a nossa convicção de que este país é superior a todos os outros por termos
nascido nele”), o requisitório é interminável e uniformemente contundente,
Nenhum conceito, à partida, venerável se desgastou tanto, com o tempo e com o
uso, ao ponto de se tornar suspeito e mesmo repulsivo. Paul Léautaud, o autor
do famoso Journal e das não menos famosas e ferinas críticas de teatro,
pôs a cereja no cocuruto do bolo, ao afirmar: “O amor produz parvos, o
casamento cornudos e o patriotismo sacanas imbecis”.
Foi esta capacidade de
indignação, ao serviço de um extraordinário talento para a observação e para a
caricatura, que fez de Eça o extraordinário “poeta satírico”, como, com justeza
e justiça, lhe chamou Régio. Vem tudo isto a propósito de uma atraente
“antologia ilustrada” de Os Maias, da responsabilidade de Rui Campos
Matos, que a Parceria A.M. Pereira, em boa hora, editou.
Rui Campos Matos é arquitecto, no
Funchal, e divide-se entre esta vocação e outra de ilustrador de livros (já se
distinguiu, nesta última capacidade, com a Clepsydra, de Pessanha, e com
O Mandarim, de Eça). Ao ilustrar o autor de O Primo Basílio, Rui
C. Matos é naturalmente atraído para o traço caricatural, umas vezes mais
benigno, muitas outras, mais contundente. E digo que é atraído, naturalmente,
porque Eça é, acima de tudo, não um grande escritor romântico, ou realista ou
trágico, mas sim, como já indiquei, um grande escritor satírico. E,
neste ponto, seja-me permitida uma observação: no belo prefácio de Pedro
Larsen, faz-se referência à “qualidade fundamental do grande romance [Os
Maias]”, como sendo “o estupendo, profundo humorismo (...) que percorre e
tempera de ponta a ponta o seu carácter pessimista(...)”. Ora eu não creio que
Eça possa, correctamente, ser caracterizado como “humorista”. Eça é antes, como
lhe chamou Régio, um grande “poeta satírico”, na linha de Swift ou Evelyn
Waugh. A sátira, ao contrário do humorismo (mais benigno), é sempre acutilante,
contundente, malévola... – pretende ferir, deixar mossa, fazer mal, porque o
autor se indigna com um determinado estado de coisas, que pretende modificar.
Voltaire, o autor de Candide, observava que “a gargalhada [se] origina
sempre numa disposição alegre, absolutamente incompatível com o desprezo e a
indignação”, assim aludindo ao humorismo e ao cómico benigno e não à sátira,
que é sempre um ataque contundente, incisivo e indignado, prenhe de
desprezo pelo objecto visado. A humilhação do Dâmaso (dada em traços acerados,
pelos desenhos das pp. 112 a 116) não provoca em nós uma gargalhada alegre e
salutar, pelo contrário, deixa-nos abatidos e nauseados, por estarmos a
assistir a um penoso espectáculo de degradação humana. Spinoza e Hegel fizeram
observações análogas, indicando bem a linha de separação entre o humor e
a sátira. Hegel observava, por exemplo, que “na mais elevada espécie de
comédia, o espectador ri-se com o actor e não do actor.” Ora nós
rimo-nos não com o Dâmaso, mas do Dâmaso; não com o
Eusebiozinho, mas do Eusebiozinho.
Esta distinção entre o
contundente da sátira e a quase benevolência do humorismo vem já de muito longe,
pelo menos, da antiguidade clássica. Já então se fazia uma distinção clara
entre a sátira horaciana (amena, sorridente), que não era bem sátira, e
a sátira juvenaliana, que era acutilante e cheia de indignação e
desprezo. Juvenal (60 – 140 D.C.) fez uma pintura viva e até brutal da Roma
decadente em que vivia, o que o não tornou benquisto do imperador Domiciano.
Chegaram-nos, dele, ao todo, dezasseis sátiras e, numa delas, indica, com
ironia, quão difícil era não as escrever, numa sociedade que estava mesmo “a
pedi-las”: “Difficile est saturam non scribere” (“O difícil é não escrever
sátiras”). É claro que não era insensível ao incómodo causado ao imperador e o
receio ter-lhe-á, alguma vez, inclinado a mão – mas a indignação provou ser,
com frequência, mais forte: “Si natura negat, facit indignatio versum” (“Mesmo
que a natureza [o medo] diga não, a indignação obriga a fazer versos”). Também,
em Eça, a indignação terá superado o receio perante os poderes vigentes (era
diplomata). Mas à negação da “natura” (o medo que guarda a vinha), sobrepôs-se
sempre a força da “indignatio” (e mais ainda o gosto de dar livre curso à sua
verve satírica, sugeriria Régio...).
Uma observação: na página quinze,
R. C. Matos fala, e bem, nos “dois registos essenciais d’Os Maias: o
cómico e o trágico”, embora eu preferisse “o satírico e o trágico”, concedendo,
no entanto, que há, no livro, algumas cenas cómicas que não atingem o estatuto
do “satírico”. De resto, o artista fala, cautelosamente, nos “dois registos
essenciais”, não dizendo que sejam únicos. Há de facto vários personagens que
não são caricaturas (sátira), nem, de modo algum, personagens cómicas: Afonso
da Maia, Maria Eduarda, Carlos, etc. Nenhuma delas convida à sátira do
escritor, nem à caricatura do ilustrador. São, quando muito, aquilo a que E. M.
Forster chama “personagens planas” ou a duas dimensões, por oposição às
“redondas” ou a três dimensões. Algumas das personagens planas do canon
queirosiano chegam mesmo a ser “típicas” (Acácio, Steinbroken).
É aqui que toda a arte de Campos
Matos usa dos seus notáveis recursos: o traço caricatural forte, acerado,
ofensivo, que nos dá as manas Silveiras, o Eusebiozinho, o Ega, o
Gouvarinho, o Dâmaso (gordo, gorduroso, de perna curta), a baronesa e o barão
Craben, a Carmen Filósofa, o Alencar...; por outro lado, o traço mais comedido
e equilibrado, embora suavemente deformante (um claro “recuo” em relação à
sátira sangrenta) com que nos dá figuras menos caricaturáveis (Afonso,
Carlos etc), O Alencar, situá-lo-ia, até, num meio-termo: um cómico
mais benigno, embora com laivos de sátira (rimo-nos dele mas também com
ele). A minha ilustração favorita seria, porém, a do Sousa Neto, personagem
secundaríssimo, não exactamente ao alcance da sátira juvenaliana, mas o tipo
acabado do asno pomposo, ignorante, vazio, solene e palrador (pp. 96/97). Rui
C. Matos deu-nos aqui uma rica, comedida e complexa caricatura que é
verdadeiramente de mestre. Eça era dotado de uma poderosa força
caracterizadora, sempre atento ao pormenor excessivo e revelador de um gesto,
de uma careta de uma sobrancelha ou de um vestuário de que a precisão e minúcia
divertidas nos encantam. Rui C. Matos “aproveita” gulosamente estas
“indicações” do romancista e transporta-as, com eficácia, para o seu texto
pictórico. Ambos cumprindo “o primeiro dever de um autor” que é, segundo Behan,
“deixar o seu país pelas ruas da amargura”... » Eugénio Lisboa, em Crónica publicada no JL.
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