Tipasa |
Núpcias em Tipasa
"É preciso que eu
fique nu e, depois, mergulhe no mar e que, ainda perfumado de essências da
terra, possa lavá-las nas águas desse mesmo mar, estreitando em meu corpo o
abraço pelo qual suspiram, lábio a lábio, há tão longo tempo, a terra e o mar.
Uma vez dentro d’água, é o sobressalto, a subida de uma viscosidade fria e
opaca, depois o mergulho no zumbido dos ouvidos, o nariz a pingar e a boca
amarga – o nado, os braços envernizados de água, saídos do mar para se dourarem
ao sol e movidos numa torção de todos os músculos, a corrida da água sobre meu
corpo, a posse tumultuosa da onda pelas minhas pernas – e a ausência de
horizonte.
Na praia, é a queda na
areia, abandonado ao mundo, uma vez mais de volta a meu peso de carne e osso,
embrutecido de sol, lançando de longe em longe um olhar para os meus braços,
onde as poças de pele seca deixam a descoberto, à medida que a água escorre, a
penugem loura e a poeira de sal.
Aqui, compreendo o que se
denomina glória: o direito de amar sem medida. Existe apenas um único amor
neste mundo. Estreitar um corpo de mulher é também reter de encontro a si essa
alegria estranha que desce do céu para o mar. Daqui a pouco, quando me atirar
no meio dos absintos, a fim de que seu perfume penetre meu corpo, terei
consciência, contra todos os preconceitos, de estar realizando uma verdade que
é a do sol e que será também a de minha morte. Em certo sentido, é justamente a
minha vida que estou representando aqui, uma vida com sabor de pedra quente,
repleta de suspiros do mar e de cigarras, que agora começam a cantar. (...)
(...) Ao entardecer,
encaminhei-me para uma zona mais bem tratada do parque, toda ajardinada,
situada à beira da estrada nacional. Ali, ao sair do tumulto dos perfumes e do
sol, no ar agora refrescado pela tarde, o espírito se acalmava e o corpo,
distendido, saboreava o silêncio interior que nasce do amor satisfeito.
Sentei-me num banco.
Olhava o campo arredondar-se com o dia. Sentia-me saciado. Sobre mim, uma
romãzeira deixava pender os botões de suas flores, cerrados e cheios de
nervuras como pequeninos punhos fechados que contivessem toda a esperança da
primavera. Havia alecrim, atrás de meu banco, mas eu percebia apenas o perfume
do álcool. Colinas emolduravam-se entre as árvores e, mais longe ainda, um
debrum de mar por cima do qual o céu, como vela enfunada, repousava toda a sua
ternura. Sentia em meu coração uma estranha alegria, a mesma que nasce da
consciência tranquila." Albert Camus, in Núpcias O Verão, Círculo do Livro
Sobre o livro
"Núpcias, o Verão – Este volume reúne o que se poderia chamar de textos da juventude, ou da pré-maturidade, de Albert Camus. Esses textos ainda não apresentam aquilo que viria a ser a marca registada do grande escritor: o estilo exigente, a procura de processos literários estritamente adaptados a seu objecto, líricos porém sóbrios, quase sempre tendendo à nudez e ao despojamento.
Contudo, nem por isso, deixam de ser representativos do mais autêntico pensamento camusiano, tal como ele próprio o resumiu, no discurso de recepção do Prémio Nobel de literatura, em 1957: “escrever é iluminar os problemas que se colocam à consciência dos homens".
Sem comentários:
Enviar um comentário