quinta-feira, 22 de outubro de 2015

O abraço entre a Terra e o Mar

Tipasa
Núpcias em Tipasa
"É preciso que eu fique nu e, depois, mergulhe no mar e que, ainda perfumado de essências da terra, possa lavá-las nas águas desse mesmo mar, estreitando em meu corpo o abraço pelo qual suspiram, lábio a lábio, há tão longo tempo, a terra e o mar. Uma vez dentro d’água, é o sobressalto, a subida de uma viscosidade fria e opaca, depois o mergulho no zumbido dos ouvidos, o nariz a pingar e a boca amarga – o nado, os braços envernizados de água, saídos do mar para se dourarem ao sol e movidos numa torção de todos os músculos, a corrida da água sobre meu corpo, a posse tumultuosa da onda pelas minhas pernas – e a ausência de horizonte.
Na praia, é a queda na areia, abandonado ao mundo, uma vez mais de volta a meu peso de carne e osso, embrutecido de sol, lançando de longe em longe um olhar para os meus braços, onde as poças de pele seca deixam a descoberto, à medida que a água escorre, a penugem loura e a poeira de sal.
Aqui, compreendo o que se denomina glória: o direito de amar sem medida. Existe apenas um único amor neste mundo. Estreitar um corpo de mulher é também reter de encontro a si essa alegria estranha que desce do céu para o mar. Daqui a pouco, quando me atirar no meio dos absintos, a fim de que seu perfume penetre meu corpo, terei consciência, contra todos os preconceitos, de estar realizando uma verdade que é a do sol e que será também a de minha morte. Em certo sentido, é justamente a minha vida que estou representando aqui, uma vida com sabor de pedra quente, repleta de suspiros do mar e de cigarras, que agora começam a cantar. (...)
(...) Ao entardecer, encaminhei-me para uma zona mais bem tratada do parque, toda ajardinada, situada à beira da estrada nacional. Ali, ao sair do tumulto dos perfumes e do sol, no ar agora refrescado pela tarde, o espírito se acalmava e o corpo, distendido, saboreava o silêncio interior que nasce do amor satisfeito.
Sentei-me num banco. Olhava o campo arredondar-se com o dia. Sentia-me saciado. Sobre mim, uma romãzeira deixava pender os botões de suas flores, cerrados e cheios de nervuras como pequeninos punhos fechados que contivessem toda a esperança da primavera. Havia alecrim, atrás de meu banco, mas eu percebia apenas o perfume do álcool. Colinas emolduravam-se entre as árvores e, mais longe ainda, um debrum de mar por cima do qual o céu, como vela enfunada, repousava toda a sua ternura. Sentia em meu coração uma estranha alegria, a mesma que nasce da consciência tranquila." Albert Camus, in Núpcias O Verão, Círculo do Livro

Sobre o livro
"Núpcias, o Verão – Este volume reúne o que se poderia chamar de textos da juventude, ou da pré-maturidade, de Albert Camus. Esses textos ainda não apresentam aquilo que viria a ser a marca registada do grande escritor: o estilo exigente, a procura de processos literários estritamente adaptados a seu objecto, líricos porém sóbrios, quase sempre tendendo à nudez e ao despojamento.
Contudo, nem por isso, deixam de ser representativos do mais autêntico pensamento camusiano, tal como ele próprio o resumiu, no discurso de recepção do Prémio Nobel de literatura, em 1957: “escrever é iluminar os problemas que se colocam à consciência dos homens".

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