Por Simon
Blackburn
"Alguns moralistas recomendam que a vida "autêntica" não
significa simplesmente lembrarmo-nos de que um dia morreremos, mas de alguma
maneira viver permanentemente com a consciência desse facto,
"viver-para-a-morte". O poeta John Donne tinha mesmo o seu próprio
retrato em que aparecia pintado de mortalha, antecipando cheio de esperança a
maneira como iria encarar o Juízo Final. Todavia, a maioria das pessoas não
acha a preocupação de Donne particularmente saudável. De facto, tal estado de
espírito prevalece apenas em condições de instabilidade social e impotência
política, correspondendo a uma tendência para o pessimismo e o suicídio entre a
intelligentsia. Ora, não é fácil argumentar com um estado de espírito.
Se o poeta se sente atraído pela serenidade da morte, ou nauseado pela desordem
humana, talvez precise de uma mudança de governo, ou de um tónico, ou de umas
férias, de preferência a um argumento.
A obsessão pela morte pode correr o perigo de inconsistência. É
inconsistente a veemência de que a morte é uma coisa boa, e até um luxo em si,
e que ao mesmo tempo o que torna a vida absurda e ilusória é que ela tem um
fim. Mas por que razão é isto um problema se a morte é estimável?
Apesar de argumentarem que a morte não é para ser temida, os estóicos não
promoveram qualquer preocupação mórbida com a morte. Em vez disso, tal como o
uso moderno do seu nome sugere, a sua mensagem era de força de espírito e
resignação perante a morte, ou de fatalismo em face do inevitável desenrolar
dos acontecimentos. A atitude estóica está enraizada numa das conotações
populares do próprio termo "filosofia", como se pode ver no
comentário de uma pessoa sobre a desgraça de outra: "encara as coisas
filosoficamente — simplesmente não penses nisso." P. G. Wodehouse
provavelmente tem a última palavra sobre este aspecto dos Estóicos. Jeeves
consola Bertie:
"Não sei se posso chamar a sua atenção para uma observação do
imperador Marco Aurélio. Disse ele: "Acontece-te o que quer que seja? Isso
é bom. Faz parte do destino de Universo determinado para ti desde o início.
Tudo o que te acontece faz parte da grande rede"".
Respirei com um estertor.
"Ele disse realmente isso?"
"Sim, Sir."
"Bem, podes dizer-lhe da minha parte que ele é um idiota. As minhas
malas estão prontas?
Como Bertie observou judiciosamente mais tarde: "Duvido, como
questão de facto, se o que Marco Aurélio afirmou poderá alguma vez dar moral às
tropas quando elas se deparam com um destino terrível: terás de querer esperar
que a agonia se abata sobre ti."
Os filósofos e poetas que tentam reconciliar-nos com a morte não o fazem
habitualmente com argumentos tão incisivos como os Estóicos, nem com o
fatalismo Estóico, mas lamentando-se da própria vida. Já todos ouvimos o
funesto refrão: o mundo não é senão discórdia, instabilidade e desordem. A vida
é tédio e fardo. As suas esperanças ilusórias, os seus prazeres
insignificantes. O desejo é infinito e insaciável; a satisfação não traz
apaziguamento. Carpe Diem (aproveita o dia) — mas não podes aproveitar o
dia porque o dia se desvanece enquanto tentas fazê-lo. Tudo mergulha no abismo,
nada é estável; palácios e impérios desfazem-se em pó; friamente, o universo
move-se e tudo será no fim esquecido.
Vaidade das vaidades, diz o pregador, vaidade das vaidades, tudo é
vaidade. Que benefício retira o homem de todo o seu labor na terra?
Acima de tudo, os mortos têm de ser invejados. A morte é preciosa. Melhor
seria não ter nascido, mas uma vez nascido, o melhor será morrer depressa.
O perigo aqui consiste naquilo a que o filósofo George Berkeley
(1685-1753) chamou o vício da abstracção, "a rede subtil e elegante de
ideias abstractas que deixam os espíritos dos homens tão miseravelmente
perplexos e enredados". É mais fácil lamentar a natureza irrisória do
desejo e as suas inconsistências se não nos centrarmos em nada, mantendo a
discussão em termos abstractos. Desse modo, parece desolador se a satisfação do
desejo é efémera e o próprio desejo é instável e susceptível de dar origem apenas
a mais insatisfação. Mas será que isto é de lamentar? Pensando em termos
concretos, supõe que nos apetece um bom jantar e que ele nos deu prazer. Deverá
envenenar o prazer que tivemos a reflexão de que o prazer é efémero (o prazer
deste jantar não subsistirá para sempre), de que o desejo de um bom jantar não
perdura (mais tarde não sentiremos fome) ou é apenas temporariamente satisfeito
(iremos querer jantar amanhã outra vez)? A verdade é que a vida não se tornaria
melhor se quiséssemos sempre um jantar, ou se, tendo jantado, não quiséssemos
mais nenhum jantar, ou se aquele jantar bastasse para toda a vida. Nenhuma
destas coisas parece remotamente desejável; logo, porquê lamentarmo-nos se as
coisas não são assim?
Se a disposição pessimista abandonar a abstracção de certas ideias,
tenderá a concentrar-se em desejos problemáticos, tais como o desejo de
riqueza, ou o desejo erótico. É fácil argumentar que estes desejos são
intrinsecamente insaciáveis, pelo menos para algumas pessoas durante algum
tempo. Da aquisição de riqueza resulta frequentemente ou a exigência de mais
riqueza, ou a incapacidade de gozar o que se tem. O nosso bem-estar pode ser
destruído pela pobreza, mas a mais breve consideração das vidas dos ricos não
sugere que o bem-estar aumenta indefinidamente com mais riqueza. Muitas pessoas
são hoje mais ricas do que qualquer pessoa alguma vez foi, mas serão mais
felizes? Estatísticas sociais relevantes, como taxas de suicídio, não o
sugerem. Os fechados e vigiados guetos dos ricos, como o American Governor's
Club, dificilmente permitem testemunhar vidas felizes e invejáveis. E, seguindo
Veblen, podemos esperar que o aumento de riqueza simplesmente fará subir a
fronteira a partir da qual a vaidade exigirá que os ricos se distingam. Esta é
uma das coisas desencorajadoras acerca da desencorajadora ciência económica.
O desejo erótico, outra carta de trunfo dos pessimistas, é notoriamente
insatisfeito e incerto, além de que oferece apenas realização parcial.
Provavelmente nunca chegaremos a possuir tanto outra pessoa quanto realmente
desejaríamos. A arte não tem tido dificuldade em ligar o desejo erótico ao
desejo de morte e aniquilação. O próprio amor é uma espécie de morte — o amante
é penetrado ou atacado. Nesta tradição, os delírios do amor, especialmente o
orgasmo (em francês une petite mort, "uma pequena morte"), são
símbolos da morte real. Argumenta-se que as mortes em Tristão e Isolda ou
em Romeu e Julieta indicam o desejo oculto dos amantes de extinção
conjunta. Na arte é extraordinariamente perigoso ser uma mulher apaixonada,
como nos lembra a interminável procissão de Ofélias, Violetas, Toscas e Mimis.
É bastante deprimente supor que mesmo eros (desejo) é contaminado
por thanatos (morte). Mas talvez o vício da abstracção esteja em
funcionamento mais uma vez. Se prestarmos atenção a algumas obras de arte,
concluímos que o desejo erótico tem a morte no seu centro. Não paramos para
reflectir que era o artista que sentia a necessidade do tema dos amantes
fatais, suprimindo a referência a quaisquer prazeres e alegrias comuns. O
artista tem boas razões para construir Jack e Jill como Romeu e Julieta. Mas
provavelmente Jack e Jill são em si bastante mais alegres. A tragédia não é
inevitável nem habitualmente desejada.
Do mesmo modo, deslizamos para a abstracção quando perguntamos se a vida
em bloco, como se de uma massa informe se tratasse, "tem um sentido",
talvez imaginando algum observador externo, o qual até podemos ser nós próprios
para além do túmulo, olhando para trás. Preocupa-nos que o observador domine
com o seu olhar a totalidade do espaço e do tempo e que a nossa vida encolha
até não ser nada, apenas um insignificante e infinitesimal fragmento do todo.
"O silêncio desses espaços infinitos aterroriza-me", disse Blaise
Pascal (1623-62).
Mas Frank Ramsey (1903-30), o filósofo de Cambridge, respondeu:
Onde eu pareço divergir de alguns dos meus amigos é em conceder pouca
importância ao tamanho das coisas. Não me sinto nem um pouco humilhado perante
a vastidão dos céus. As estrelas podem ser enormes, mas não podem pensar ou
amar; e estas são qualidades que me impressionam bastante mais do que o
tamanho. Não me acrescenta qualquer importância o facto de eu pesar 108 quilos.
A minha descrição do mundo é elaborada em perspectiva e não como um
modelo em escala. O solo é ocupado por seres humanos e as estrelas são todas
tão pequenas como moedas de três dinheiros.
Quando perguntamos se a vida tem sentido, a primeira questão terá de ser:
para quem? Para um observador com a totalidade do espaço e do tempo no seu
olhar, nada a uma escala humana terá sentido (é difícil imaginar como é que ela
pode ser de todo visível — há uma medonha quantidade de espaço lá longe). Mas
por que razão a nossa insignificância no interior dessa perspectiva deverá
esmagar-nos? Suponha-se em vez disso que temos em mente uma audiência que
desceu à nossa medida. Alguém que dedica a sua vida a algum objectivo, como a
cura do cancro, pode perguntar se a sua vida tem sentido, e a sua preocupação
será se tem sentido para aqueles para quem trabalha. Se o seu trabalho for bem
sucedido, ou se a geração seguinte o tiver em conta, a sua vida terá tido
sentido. Para algumas pessoas, é dolorosa a ideia de que o seu trabalho possa
falhar e não deixar memória. Outros arranjam-se muito bem com isso: afinal,
muito, muito poucos mesmo, deixam atrás de si realizações que suscitam a
admiração contínua da próxima geração, para não falar das gerações que vierem a
seguir. Isto é tristemente verdade mesmo em departamentos de filosofia.
Talvez nos vejamos a nós próprios na posição de juiz: cada um de nós
pergunta se a vida tem sentido para si, aqui e agora. E nesse caso a resposta
depende. A vida é uma corrente de acontecimentos vividos no interior da qual há
frequentemente bastante sentido — para nós próprios e os que nos rodeiam. O
arquitecto Mies van der Rohe disse que Deus está nos pormenores e o mesmo é
verdade acerca do sentido da vida para nós, aqui e agora. O sorriso do filho
significa tudo para a mãe, a carícia significa beatitude para o amante, a
mudança de frase significa felicidade para o escritor. O sentido vem da entrega
e do prazer, da corrente de pormenores que são importantes para nós. O problema
que há com a vida é então o de ela ter demasiado sentido. Todavia, se o estado
de espírito é outro, tudo é penoso. Como Hamlet, estamos determinados a
esquivar-nos do carnaval humano, não vendo senão a caveira debaixo da pele. É
triste quando nos tornamos seres humanos assim e mais uma vez precisamos de um
tónico de preferência a um argumento. Ou talvez neste caso, o único bom
argumento, numa famosa frase de Hume, é que não há nenhuma maneira de fazer de
ti uma pessoa útil ou agradável para ti próprio ou para os outros."
Simon Blackburn, in Being Good: A Short Introduction to Ethics, Oxford: Oxford University
Press, 2002, (Tradução de Faustino Vaz)
Sem comentários:
Enviar um comentário