"Por extraordinário que pareça, o Paraíso existe e está ao nosso alcance: ao cimo da Calçada, quase no encontro das três ruas, mas recolhido e ausente. Desde a Sé lá em baixo, o labirinto das ruas, a meia-laranja, a íngreme ladeira com os gradeamentos polidos como bronze, os telhados sobrepostos, a capela sempre fechada - tudo isto forma um presépio erguido sobre muros e socalcos de jardins donde se debruçam velhas pimenteiras, trepadeiras e flores mal cuidadas, e se enxergam painéis de antigos azulejos.
O quadro é exactamente o mais próprio para nele se edificar um mundo à parte, duradoiro como o sonho, e como ele vago se quiserem, mas tangível, com vida e personalidade. É Lisboa, uma realidade em si, e será preciso tê-la conhecido e vivido nela para bem a compreender e amar. Reluzente e aguado de fresco, o Tejo em frente banha os pés do anfiteatro, sob o dossel do azul brunido e sem nuvens, enquanto o sol traça com minúcias de buril os perfis do Castelo, cimalhas de palácios, chaminés.
(Pode ser que a perspectiva do tempo transforme as coisas ou as reduza a proporções mais comezinhas: o que importa é que tudo continua a ser assim, na fábrica do sonho que perdura, e de certo modo cresce connosco.)Para ir ao Colégio desce-se a São Mamede: seria mais simples ir por cima, à Rua dos Milagres, mas o pai, ao sair de manhã para a sua vida, acompanha os filhos até à meia-laranja, onde os beija e se demora um pouco a vê-los subir a curva suave da rampa. No cimo , à esquerda, numa casinha oculta entre prédios mais altos está o Colégio.
As casas onde se entra a descer têm sempre um encanto de gruta ou lapa: e ali é, realmente, o começo do mistério. Para se entrar no colégio de meninos da dona Ifigénia Mealha, descem-se dois degraus: no vestíbulo acanhado, donde uma escada estreita leva ao andar de cima, vira-se à mão esquerda, há mais um ou dois degraus e a gente afunda-se no corredor., portas sempre fechadas a um lado e outro, e ao fim dele abre-se a Aula, minúscula como tudo o mais ali , incluindo a senhora-mestra. Precisamente, a nebulosidade redobra o encanto de tudo isto. (A infância reduz a sua especulação do desconhecido ao estritamente imediato e transfere-o em sonho ou poesia; o poder de observação realista, de abstracção e generalização, esse, é do adulto.)"
José Rodrigues Miguéis, in " A Escola do Paraíso", pp.29-30, Círculo de Leitores
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