Revisitar a magia
Nesta morte que aqui brilha
nesta luz que é Veneza
nesta praça maravilha
neste pus que é beleza
nesta festa que se afunda
nesta chaga diamantina
nesta morte que aprofunda
e à beleza desatina
neste pus que é maravilha
neste luxo de rameira
nesta vida nesta ilha
nesta fúria nesta feira
neste cancro que é saúde
nesta luz que é magia
neste lento alaúde
é que sai da noite o dia.
Outono de 1984
Eugénio Lisboa, in Acta Est Fabula, Memórias III - Lourenço Marques Revisited (1955-1976), Ed. Opera Omnia, Outubro de 2013
Morrer em Veneza
À memória de Gustav Asschenbach
morto em Veneza.
Em Veneza , morre-se
Gustavo,
a meio da manhã.
Em Veneza corre-se
Gustavo
atrás da vida vã.
Morrer em beleza,
Morrer em Veneza!
À nossa volta, Veneza apodrece
e, nas malhas que a vida tece,
morremos nós, assim parece
se da vida se não merece.
Morrer em beleza,
morrer em Veneza!Arte é trabalho, dizes, Gustavo!
Arte é suor e arte é rigor.
Mas deixa na boca um duro travo
a montes de cinza , sem amor.
Morrer em beleza,
morrer em Veneza!
Em Veneza , morre-se
Gustavo,
da vida que não houve.
Em Veneza, morre-se,
Gustavo,
do destino que nos ouve.
Morrer em beleza,
morrer em Veneza!
Ouvir nos canais o rumor da morte,
enquanto em cima buscamos a vida.
A beleza, Gustavo, é o norte,
quando em nós a vida já é perdida.
Morrer em beleza,
morrer em Veneza!
A peste que nos perca
e o belo que nos cerca:
modos de achar em Veneza
o nó da nossa certeza.
Morrer em beleza,
Morrer em Veneza!
Eugénio Lisboa, in Voz de Moçambique , 28 de Maio de 1972
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