Por
António Lobo Antunes
“Manuel, não imaginas quanto estiveste comigo em
África e quanto continuas comigo porque, em certo sentido, nunca saímos de lá.
E tu ajudaste-me naquele exílio muito mais do que imaginas
Passei a Faculdade a escrever. Não estudava, não ia
às aulas, houve exames a que nem sequer compareci.
Ainda hoje me espanta a paciência com que o meu pai
aturou isso tudo, ele que era muito autoritário e, por vezes, violento.
Argumentava que queria ser escritor, não queria ser médico, soube muito mais
tarde que o meu pai, para meu espanto, tinha a certeza que eu tinha talento
embora não lhe mostrasse o que fazia: periodicamente queimava tudo junto à
figueira do quintal, depois soube que ele ia lá sem me dizer nada, lia os
restos que ficavam na cinza e copiava-os para um caderno verde. O meu pai
possuía um respeito sagrado pelos artistas e talvez, na sua cabeça, pensasse
que eu era um deles, enquanto eu, pouco mais do que um miúdo, vivia atormentado
pelas minhas deficiências, sempre a dizer-me
- Ainda não é isto, ainda não é isto e levei vinte
anos a encontrar o que seria a minha voz, quando me apareceu a Memória de
Elefante. Disse
- Ainda não é isto mas acho que descobri o caminho. E, depois, seguiu-se o trabalho de fazer crescer aquilo tudo. Mas,
nessa altura, já havia terminado a Faculdade de Medicina, já havia passado mais
de três anos na tropa, já vivera os horrores de África. Até então fora o
tormento do curso, que o fez sofrer a ele e me aborrecia a mim. Mal começava a
estudar pensava logo
- Devia estar a escrever e voltava aos poemas
péssimos e à prosa mais do que medíocre de que então era capaz, certo que,
escondido, morava em mim um grande talento. Não certo, certíssimo, ao ponto de
sacrificar fosse o que fosse à literatura. Pai, agradeço-lhe a paciência que
teve para comigo, peço-lhe perdão de o haver humilhado com a miséria das minhas
notas, agradeço que no fundo de si, embora nunca mo dissesse, me haja
compreendido. A certa altura, a meio do curso, aconteceu uma coisa que me
abalou muito. Era o final dos anos 60, em que os estudantes se levantavam
contra a ditadura: cargas policiais, violência, prisões. Tudo isto me passou um
bocado ao lado, entregue, como estava, à minha luta com as palavras. Um colega,
no hospital, entregou-me, com grandes pedidos de segredo, um maço de folhas
policopiadas. Na primeira página estava escrito Praça da Canção e,
por baixo, o nome do autor, que nada me dizia: Manuel Alegre. Foi certamente o
livro mais lido, mais comentado, mais entusiasmante, mais influente para a
minha geração. Num segundo
(pareceu-me que num segundo) tornou-se a bandeira
dos estudantes contra o fascismo e a monstruosidade que vivíamos.
Não me interessou a sua qualidade literária.
Interessou-me a corajosa chama daqueles versos e o imenso coração do autor.
Claro que Manuel Alegre era um poeta, não me ralou
o tamanho do poeta que ele era, interessou-me o tamanho do que ele dizia.
A ousadia com que fez arder uma geração inteira, e
o incêndio que levantou sozinho. Uma ocasião, na fronteira com a Zâmbia,
morreu-me um camarada. Só sei dizer assim: morreu-me, porque me morreu de
facto. De imediato veio-me à cabeça um poema de Manuel Alegre
Ó meu amigo que nunca mais acenderás no meu o teu
cigarro
e comecei a chorar. Só quem passou por uma desgraça
assim é capaz de entender isto até ao osso
Ó meu amigo que nunca mais acenderás no meu o teu
cigarro.
Esta, e outras passagens do livro, ficaram comigo
para sempre, ficarão comigo para sempre: que nunca mais acenderás no meu o teu
cigarro.
Foi Manuel Alegre que o escreveu, e é a Manuel
Alegre que o devo, porque se trata de uma prenda que nenhum dinheiro paga. Faz
cinquenta anos que o livro surgiu, cinquenta anos de gratidão da minha parte. O
Poeta mandou-me um exemplar comemorativo do aniversário do livro, com uma dedicatória
cuja generosidade me tocou imenso. Manuel, não imaginas quanto estiveste comigo
em África e quanto continuas comigo porque, em certo sentido, nunca saímos de
lá. E tu ajudaste-me naquele exílio muito mais do que imaginas. Tenho pena que
já não fumes porque o brinde que queria fazer-te agradecendo o muito que deste
sem o saberes, ao estudantezinho anónimo que eu era, ao militar anónimo que eu
fui, seria estender o meu cigarro para ti, dizer-te olhos nos olhos
Ó meu amigo que nunca mais acenderás no meu o teu
cigarro
e esconder uma lágrima de homem para homem num
chupão imenso.”
António
Lobo Antunes, em crónica publicada na revista Visão, em 23 de Julho de 2015
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